|
Pedra do Urso e figueirinha |
No tempo em que era aluno da Faculdade de Letras, as terças-feiras eram dias especialmente saborosos. Findas as aulas matutinas, percorria, de metro e autocarro, a curta distância entre a Cidade Universitária e a casa dos meus Avós. (Também
o meu Avô Zé Reinaldo frequentara a Cidade Universitária. Não perdia uma só ocasião de dizer que tinha andado nas duas Faculdades, Letras e Direito. «Pois andei! Andei a instalar a canalização.»)
Quando chegava, havia o meu Avô de estar, com um garfo determinado, a recalcar pacientemente os bifes no grelhador. «Adeus, rapaz!» É possível que, ao mesmo tempo, ombro a ombro diante do fogão elevado, a minha Avó Natividade ultimasse o apronto dos condutos, simples, infalíveis, apetitosos.
A mesa estaria posta, com os apetrechos necessários, pão, uns pratinhos sob os copos, para não sujar a toalha. Ocupávamos os nossos lugares. Eu sentava-me à direita do meu Avô, defronte à minha Avó e ao louceiro espelhado.
Enquanto a Natividade distribuía arrozes, saladas com coentros, às vezes batatas fritas (que faz salivar mais um comilão de vinte anos do que bifes e batatas fritas?), o Zé Reinaldo abria a garrafa de
Pedra do Urso, visivelmente satisfeito, e enchia bem cheios os copos, como era de regra, até ao rebordo. Fechava a garrafa, pousava-a em seu pratinho. Tomava o copo. Devagar, com cuidado, curvando-se um pouco, levava-o aos lábios, que avançava e dispunha como se o fora beijar, e sorvia o primeiro gole regalado do vinho ligeiramente fresco.
«Comprei esta garrafa para a gente beber, hã?» O meu Avô visivelmente satisfeito. «Este vinho é bom.» (Passados tantos anos, fui eu comprar uma garrafa de
Pedra do Urso, e depois outras, para sondar o seu mistério. — Oriundo da Cooperativa da Covilhã. Vinho de Mesa. Rufete, Jaen, Trincadeira. 12,5% Vol. Rubi transparente. Frutado, levemente perfumado. Bem composto, do tipo corredio. — Este vinho é bom, e nem só por ser dos favoritos do meu Avô. Como o
Porta dos Cavaleiros, de que gosto muito também por me fazer lembrá-lo, as histórias que contava de quando andou por Viseu, na construção do edifício da Segurança Social, o meu telefonema só para lhe dizer — «Estou na Porta dos Cavaleiros!»)
O meu Avô galhofeiro. «Olha que hoje era peixe! A tua Avó é que teve pena de ti…» Também era ela que nunca esquecia os pudins de chocolate, as roscas de manteiga, as bolinhas de maçapão. «Para que vejas a Avó que aqui tens!» E, com os olhos escuros brilhantes, dobrando os dedos grossos e morenos, fazia-lhe no rosto uma carícia.
Contentes e despreocupados o bastante, o meu Avô e eu bebíamos a garrafa de
Pedra do Urso que ele comprava para a gente beber. Mesmo que fosse com peixe, decerto aquele vinho não me consolaria menos. Bebíamos com sede cada decilitro. Decilitrávamos o
Pedra do Urso. Nem por isso bebíamos muito. Antes dos dietistas, dos higienistas, dos moralistas modernos, um homem que bebesse pouco era que bebia só meia garrafa às refeições. Nós nem esse pouco, mas eu, mal saído da abstinência, não tardava a sentir um formigueiro suavíssimo na planta dos pés. Por fim, não obstante todo o peso de livros, sebentas e bolos, voltava leve para a Faculdade, com boas cores, saciado e feliz.