«O cónego Dias, pousando o talher, ergueu os braços, e com uma solenidade cómica exclamou:
— Hereticus est! É herege!
— Hereticus est! também eu digo, rosnou o padre Amaro.
Mas a Gertrudes entrava com a larga travessa do arroz-doce.
— Não falemos nessas coisas, não falemos nessas coisas, disse logo prudentemente o abade. Vamos ao arrozinho. Gertrudes, dá cá a garrafinha do Porto!
Natário, debruçado sobre a mesa, ainda arremessava argumentos a Amaro:
— Absolver é exercer a graça. A graça só é atributo de Deus: em nenhum autor encontra que a graça seja transmissível. Logo...
— Ponho duas objecções... gritou Amaro com o dedo em riste, em atitude de polémica.
— Oh, filhos! oh, filhos! acudiu o bom abade aflito. Deixem a sabatina, que até nem lhes sabe o arrozinho!
Serviu o vinho do Porto, para os acalmar, enchendo os copos devagar, com as precauções clássicas:
— Mil oitocentos e quinze! dizia. Disto não se bebe todos os dias.
Para o saborear, depois de o fazer reluzir à luz na transparência dos copos, repoltreavam-se nas velhas cadeiras de couro; começaram as saúdes! A primeira foi ao abade, que murmurava: — Muita honra... muita honra... Tinha os olhos chorosos de satisfação.»
Eça de Queiroz, em «O Crime do Padre Amaro»
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