terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Noite velha

Não fiz nada, bem sei, nem o farei

Não fiz nada, bem sei, nem o farei,
Mas de não fazer nada isto tirei,
Que fazer tudo e nada é tudo o mesmo,
Quem sou é o espectro do que não serei.

Vivemos aos encontros do abandono
Sem verdade, sem dúvida nem dono.
Boa é a vida, mas melhor é o vinho.
O amor é bom, mas é melhor o sono.

Fernando Pessoa (1931)

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Coríntios 11:23-25

«De facto, eu recebi do Senhor aquilo que vos transmiti. Isto é, que o Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou pão, deu graças a Deus, partiu-o e disse: “Isto é o meu corpo, entregue para vosso benefício. Façam isto, em memória de mim.” Do mesmo modo, no fim da ceia tomou o cálice e disse: “Este cálice é a nova aliança feita através do meu sangue. Sempre que dele beberem, façam-no em memória de mim.”»

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Lavoisier era franciú

Pronto. Tanto andaram, que conseguiram acabar de matar o velho JP Garrafeira. Já há anos o tinham rebaptizado como «JP Private Selection». Rebaptizar! O que fizeram foi deitar fora o nome e arranjar — tipo — um naming, porque os vinhos precisam ganhar naming no mercado. Depois, um bebedor chinês que topasse com o bom JP Garrafeira certamente o veria com maus olhos em bico, derivado — hã — à falta de sainete.

Pois não é que o velho e bom Castelão estreme foi preterido por um misto — tipo, um blend — de Syrah, Castelão e Cabernet Sauvignon? Ou talvez sejam outras castas quaisquer, porque a ficha do vinho na Bacalhôa também está blended: indica-se este trio de uvas, mas descreve-se a vinificação como dantes:

Produzido 100% a partir da casta Castelão (Periquita), oriunda de vinhas da denominação de origem Palmela. Os solos arenosos, o clima temperado quente que caracteriza esta região e as vinhas velhas de alta densidade de plantação constituem as condições ideais para a obtenção das uvas de grande qualidade que utilizamos. Método clássico de vinificação.

Eu quero trasladar para aqui, não vá também desaparecer, o que Filipa Tomaz da Costa, a experiente enóloga da Bacalhôa (já conta, pelo menos, trinta vindimas), escreveu num fórum internético em 2008:

No caso do Castelão, a casta tinta rainha de Setúbal, já reparou que nesta região já fazíamos monocastas mesmo antes de estarem na moda?
Esta casta tem o seu maior potencial aqui na Península de Setúbal. É uma casta que eu comparo um pouco aos Pinot Noir da Borgonha. Quando a fruta é de qualidade e bem vinificada, origina grandes vinhos, mas não se compadece com grandes produções...
Ela é a base do nosso vinho JP Garrafeira, agora chamado de JP Private Selection DOC Palmela. Esta marca tem um estilo muito próprio e que eu acho engraçado, devido a ser quase único na região.
Tem um estilo um pouco tradicional, o que me encanta, uma vez que hoje em dia não há nada parecido. É um vinho para acompanhar uma refeição. Não dizem que os vinhos estão massificados? Aqui é uma prova do contrário. Já estou a divagar! Pergunta se tem boa aceitação? Temos uma óptima aceitação nos mercados nórdicos e em Inglaterra, e em crescimento.

Mas então, dão-se os anéis valiosos e fica-se com imitações banais?

Nada se perde, tudo se transforma? Vê-se que Lavoisier não era portuga.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Ubuntu

Lembrei-me de partilhar consigo, leitor, a minha lista de compras vinárias para os próximos dias, rebuscada nos folhetos dos supermercados. Neste tempo algo barbárico onde calhámos, é um pequeno gesto, modestíssimo, de ubuntu: uma forma de sermos uns para os outros.


Lidl
Chaminé tinto (3,19 €)
Valle Pradinhos tinto (7,99 €)

Pingo Doce
Paulo Laureano Clássico tinto (1,99 €)
Adega de Pegões Colheita Seleccionada tinto (3,49 €)
Offley Porto Tawny 10 anos (7,49 €)


Adenda | No noticiário das 15h da TSF, ouviu-se Cavaco Silva (Sovaco* Silva, segundo aquele crianço da Orquestra Geração) embolar a palavra «ubuntu». Parecia que um membro da Academia Ubuntu lhe estava administrando a manobra de Heimlich. Deplorando a coincidência, devo esclarecer que, não só ignoro escrupulosamente a agenda de Cavaco, como VIVA EL-REI!

* «Sei que alguém gostaria de me perguntar: você fala em cu e boceta, mas usa axila em vez de sovaco. Porquê? A resposta é muito simples. Cu e boceta têm uma obscenidade fáustica, que ainda resiste ao uso e abuso desses termos nos dias atuais. Mas sovaco é uma palavra vulgar, de uma trivialidade reles e fosca.» ― Rubem Fonseca, em Axilas & Outras Histórias Indecorosas (2011)

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Advertência oriental

Há no Lidl um vinho espanhol, DO Terra Alta, chamado Vespral Reserva. É feito com Tempranillo e Garnacha. Estão agora a vender a colheita de 2008, por 1,89 €. Eh pá, vocês, que não querem ser vistos a manusear vinhos chinfrins, enfiem um boné e uns óculos escuros e vão lá comprá-lo. Depois venham-me falar em tintos bons comò caramelo.

A propósito, o Señorio de Gayan Gran Reserva 2007 está de novo à venda no Aldi. Bem bom. Eu cá já me orientei, e olhem que fui ao natural, só com a barba e as lunetas. Salvo seja, salvo seja.

Quem adverte amigo é.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Rescaldo

Ceámos tarde, na sala de estar, abrigados do frio, revendo cenas de Os Maias de Luiz Fernando Carvalho. A canjinha não me escaldou, mas acudiu-me à alma. O arroz com favas ainda apanhou um resto de cacholeira. Calhou soberbo. A mulher amada está com a mão milagrosa. Não comemos o ananás: além do Madeira, faltava o mel e laranjas, e era tarde, e fazia um frio avançadiço de glacificar. Substituímo-lo por Pedaçudas, umas grossas bolachas de chocolate ― igualmente, lavor de Fada ― que farão legenda e o Eça haveria de apreciar. O Colares era Viúva Gomes deste século, um 2003 de quartilho, donde, não me fartei propriamente. Oxalá o seu espírito se haja alegrado.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Carambíssima!

Esta noite, cá em casa, temos uma ementa especial para a ceia. Primeiro, uma canja fervente, para esquentarmos.

Jacinto ocupou a sede ancestral ― e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou ― e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: ― «Está bom!»
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia: três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
― Também lá volto! exclamava Jacinto com uma convicção imensa. É que estou com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira.

Como prato principal, arroz com favas.

E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado ― e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas.

Para a sobremesa, estou a magicar um ananás com Algarseco e mel ― porque não temos Madeira.

Mas o Domingos servia o ananás. E o Ega provou e rompeu em clamores de entusiasmo. Oh que maravilha! Oh que delícia!
― Como fazes tu isto? Com Madeira...
― E génio! exclamou Carlos. Delicioso, não é verdade? Ora digam-me se tudo o que eu pudesse fazer pela civilização valeria este prato de ananás! É para estas coisas que eu vivo! Eu não nasci para fazer civilização...

Quanto ao vinho, será Colares, como vem nos livros.

Ah, que dia! Jantei num gabinete do Hotel Central, solitário e egoísta, com a mesa alastrada de Bordéus, Borgonha, Champagne, Reno, licores de todas as comunidades religiosas ― como para matar uma sede de trinta anos! Mas só me fartei de Colares.

E, caramba, rapazes, carambíssima! Lá vai à do Eça, que nasceu faz hoje 168 anos!

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

After half a glass

Adrian Mole, o diarista inventado por Sue Townsend, é um nome que avulta no longo rol de motivos para se ser anglófilo. (Nessa lista, também constam Tristram Shandy, o chá Earl Grey, o bolo da Sra. Darwin, o queijo Stilton, o especial apreço pelas aves e pelos jardins, a BBC, séries televisivas como Fawlty Towers e Rev., bandas como os Madness e os Blur, o exílio de D. Manuel II, Sir Winston Churchill, a fleuma e o humor negro, Postman Pat e Shawn the Sheep, Matt Jones, aliás, Matthew Robert Jones, aliás, Mr. Jones, o keeper do Belenenses etc.)

Adrian, herói sem glória da fé em si mesmo, continua a escrever os seus diários, começados aos treze anos e três quartos. No volume que acabo de ler, intitulado The Capuccino Years (1999), encontra-se a seguinte entrada, aqui transcrita em dedicação aos detractores da Pátria:

Quarta-feira, 15 de Abril

Esta noite, com a ajuda da Eleanor, o Glenn copiou o seu nome e a sua morada, e também «Gazza», «Hoddle» e «Campeonato do Mundo».

Abri uma garrafa de Mateus Rosé e convidei a Eleanor a juntar-se a mim e celebrar o progresso dele. Quase desejei não o ter feito ― ao fim de meio copo, ela começou a mirar-me muito intensamente. Acho que me estou a desinteressar dela um pouco.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Anexim

No Dia de São Martinho, faz anos o Amável Vinho: pelo santo e pelo blogue, bebe muito ou tantesquinho, mas que não bebas sozinho.

Festejando o São Martinho (José Malhoa, 1907)

«Mesmo sendo-lhe atribuídos muitos milagres, São Martinho é famoso sobretudo por um acto de caridade fraterna. Quando era ainda jovem soldado, encontrou na estrada um pobre entorpecido e trémulo de frio. Pegou no seu manto e, cortando-o em dois com a espada, deu metade àquele homem. Nessa noite, apareceu-lhe Jesus em sonho, sorridente, envolvido naquele mesmo manto.»

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

sábado, 2 de novembro de 2013

Soluço anjinho

― Ó mãe, os outros meninos recebem amostras sem saber ler nem escrever...

― Oh, anjinho da sua mãe... Saber ler e escrever! O que é preciso é know-how.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Soluço joãozinho

― Ó mãe, os produtores nunca me amostram os vinhos deles... Só amostram aos outros meninos, e eles são estúpidos...

― Oh, filho! Estúpido é beber Uvas Douradas e esses vinhos chinfrins.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Exortação aos restauradores

Se notas, prezado restaurador, naturalmente apreensivo, que a freguesia da tua chafarica não te bebe os vinhos, embora não peças por eles, em regra, mais de três ou quatro vezes o que te custaram, salvo, é claro, um ou outro, de nome mais sonante, em que carregas um poucochinho ― faz assim, como eu vi num tasco da baixa: vinho da casa, Palmela do rótulo roxo, por 4 € a garrafa. Está bem que a margem de lucro não passa dos cento e tal por cento, mas, para tempos desesperados...

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Um jantar enunciado

Jantar. A mulher amada comprou iscas de fígado de porco. Iscas de fígado de porco. Enunciar é uma forma de saborear. Iscas de porco à portuguesa, passe o pecadilho de, na cerimónia de fritura, substituir por azeite a banha que manda a tradição. Justamente, batatas cozidas. Batatas cozidas justamente, como quem sabe cozê-las. De pospasto, marmelo assado. Bucellas de 2008, Arinto estreme, da vinha-d'alhos em diante. Não sei se estão a ver.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Saber ganhar

Instagrama contemplativo

O Belém está fora da competição pela Taça de Portugal. Perdeu com a Briosa nos penáltis. Antes assim, perder com a Briosa e nos penáltis. É muito difícil bater a estudantada quando toca a penáltis. Então se os rapazes se metem em brios, são impiedosos. Os nossos, ontem, falharam dois, acertando em cheio no mesmo poste da baliza. O equivalente a atirar com o vinho à bochecha, num clamoroso falhanço das goelas.

Cá os sócios fizeram o que lhes competia: fomos ao Malhadinhas, para repor, voltámos para casa, abrimos o branco e sentámo-nos a treinar a marcação de penáltis. Refrescados os ânimos, deliberámos que, doravante, todos os jogos do Belém vão a penáltis. Seja no tempo regulamentar ou no prolongamento, nunca mais perderemos jogo algum.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Castello d'Alba Vinhas Velhas Grande Reserva 2011

Digo eu assim para um velho amigo: «Ai queres vir jantar cá a casa, meu menino? Então, faz favor, garrafinhas de vinho, somente acima de cinco euros.» (Velhos amigos têm desconto.) «Por exemplo, tanto um Duas Quintas como um Barca Velha cumprem o requisito, porquanto custam ambos mais de cinco euros. Fica ao teu critério.» Não gosto de ser impositivo.

Ele, que é danado, acertou na mosca, apresentando-se aqui com uma garrafa deste Castello d'Alba Vinhas Velhas Grande Reserva 2011, mais outra daquele obscuro tintão, Horta do Bispo 2005 (ainda à venda no Jumbo!)



VDS – Vinhos do Douro Superior. DOC Douro. Tinta Amarela, Tinta Barroca, Tinta Francisca, Tinta Roriz, Touriga Franca, Touriga Nacional, Sousão. Rui Madeira (enol.). 14,5% vol. Cerca de 10 €.

Grande vinho. Possante, porventura ainda insondável, mas muito rico, muito longo e muito bom. A mim, não me cheirou senão a perfume de mulher ― e a vinho. Palavra de honra. O meu camarada evocou móveis antigos e óleo de cedro. (É proprietário...) Mais tarde, tomou-me uma inspiração de crítico em delirium tremens: Portentosa figura, feminilmente perfumada e oculta em capote de cetim, com óleo de cedro lustrando aparador em pau-preto. Crítico: vai buscar.

sábado, 12 de outubro de 2013

Soluço terapêutico

«O meu médico disse-me para beber uma garrafa de vinho depois dum banho quente, mas eu nem sequer consegui acabar de beber o banho quente!»

Tommy Cooper

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O malhadinhas

Sábado passado, regressámos ao Restelo. Havia muito tempo ― demasiado ― que não contemplávamos, desde a nossa velha bancada de pedra, o relvado do Belém, o céu azul por cima dele e, além do rio, o Cristo-Rei. Regressámos, e, agora que sabemos a importância de fazer parte, não mais abandonaremos o nosso lugar. Os homens permanecem.

Ora, uma vez aviado o Olhanense, adversário dessa tarde, saímos do estádio, subimos a avenida e entrámos no Supercor. Foram outros noventa minutos, pelo menos, entre provar os curiosos vinhos da Herdade da Madeira Velha, escolher outros para casa e apanhar arroz, laranjas, pão e, por razões óbvias, um pedaço de Blue Stilton.

Entre as garrafas que trouxemos, vieram um branco e um tinto da Cooperativa Agrícola do Távora, chamados ambos «O malhadinhas». 2,15 € cada. Conheci o branco neste Verão, a colheita de 2007, que encontrei num Leclerc a 1,59 €. Óptimo vinho, espertíssimo ainda.

Mas é o elogio dos contra-rótulos que quero fazer. Ao invés de cantarolar as ladainhas em voga, estes, na sua simpleza, cumprem a elementar função de despertar o apetite e o interesse.

Os brancos são apresentados como «notavelmente frescos e florais», com «a vivacidade marialva de um frutado discreto» e «um espírito tónico». Um frutado discreto, leitor! Convenhamos que, nos tempos exuberantes e, digamos, frutadinhos que correm, é de marialva.

O tinto diz que «cheira a cravo» (e cheira!) «e o sabor é voluptuoso, a cerejas maduras» (e é!). «Na ordem dos tintos, serve-se primeiro, com os mimos e as novidades de cada época.» Com quem sabe é que se aprende, ó modernaços!

Quanto a nós, leitor, se andar por lá, vemo-nos no Supercor do Restelo, quando nos formos abastecer de «O malhadinhas», no fim de o Belenenses aviar o Porto, próximo freguês. Ah, as coisas simples.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Duas Pedras 2011

Sonho Lusitano Vinhos. Regional Alentejano. Touriga Nacional, Syrah, Viognier. Rui Reguinga (enol.). 14,5% vol. 5,89 € (Jumbo).

Como a frescura da Serra lhes não bastasse, Mayson e Reguinga ajuntaram às castas negras deste tinto um pouco de Viognier, à moda do Côte-Rotie e do Monte d'Oiro*. Oh, vinho raro! Oh, formosura! Oh, pureza! Eia, Serra! Hup-lá-hô, sensibilidade enológica! (Enológica, ouviram? Enológica: ramo da filosofia vinícola que visa determinar o que é verdadeiro.) Tanto engraçaram contigo, Duas Pedras, o lacão assado no forno como o arroz de favas com cacholeira e chouriço mouro de Portalegre.

* Segundo os franceses, a casta Viognier acresce à Syrah finesse e aroma. Jancis Robinson, citando vinicultores da Austrália e da Califórnia, diz que «também ajuda a estabilizar a cor do vinho e aprofunda a sua textura.»

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Bocas roxas de vinho

Descoberta de uma tarde nevoenta e chuvosa, despedido um último copo de Meandro do Vale Meão. Ir no rio das coisas, nada mais.


Bocas roxas de vinho

Bocas roxas de vinho
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa:

Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.

Antes isto que a vida
Como os homens a vivem,
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.

Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.

Ricardo Reis (1915)

sábado, 21 de setembro de 2013

Monte da Esperança 2008


Mundo Salgueiro. Regional Alentejano (Esperança). Aragonez, Trincadeira, Alicante Bouschet, Cabernet Sauvignon. Rui Reguinga (enol.). 14,5% vol. 12 € (Restaurante Solar do Forcado, Portalegre).

Escuro, denso, profundo, aromático, forte. Perfeitamente afinado com o lombelo de touro de lide que comemos. Eis um vinho de pasto, gerado na Esperança da Serra de São Mamede.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Folha do Meio Reserva 2008


Terrenus Veritae. Regional Alentejano (Alegrete). Touriga Nacional, Syrah, Alicante Bouschet, Aragonez. Paolo Fiuza Nigra (enol.). 14,5% vol. 8,49 € (Intermarché).

Um tinto cheiroso, civilizado (não obstante o volume capitoso), verdadeiro, como a Serra. Cauda longa como a de uma pega-rabuda. Leia-se o texto de Pedro Garcias no Fugas, que me fez desejar ver Alegrete e provar este vinho de vinhas velhas.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Quinta do Boição Arinto Reserva Bruto 2008


Enovalor. DOC Bucelas. João Vicêncio (enol.) (?). 12,5% vol. 5,90 € (Caves Velhas).

Aquele típico aroma de manteiga azeda (o melhor que há), mas em pétillant, em piquant, com mousse e beaucoup d'esprit. A pequena euforia — sobria ebrietas — que oferece uma garrafa de bom espumante... Não saberia distinguir este dos champanhes franceses. — É claro que saberia: os franceses, coitados dos pobrezinhos, não têm Arinto nem Bucelas.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Terra Franca Garrafeira 1987


Sogrape. DOC Bairrada. 12% vol. 8 € (Adega do Albertino, Imaginário, Caldas da Rainha).

Vinte e seis anos aquela garrafa esperou até que a mandámos abrir no início de uma tarde mansa de férias, numa terra curiosamente chamada Imaginário. O conteúdo, um veludo com aromas delicados, lembrando mel e chocolate. Tão bom e convivial que gostou de tudo: um queijinho de meia cura, óptimos pães de trigo e de milho, a azeitona bem temperada e um soberbo prato de polvo, ambos guarnecidos com alhinho, com que o vinho pacientíssimo também se entendeu. Oito euros... Só no Imaginário.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Reguengos Garrafeira dos Sócios 2003


Coop. Agr. de Reguengos de Monsaraz. DOC Alentejo. Aragonez, Trincadeira, Castelão. 14% vol. Cerca de 16,50 € (Intermarché).

Deixámos que acumulasse fantasmas até um domingo de neblina, apropriado e frio, em pleno Agosto. A garrafa esvaziada conserva essas marcas no peito e, no fundo, o último ai de um bouquet maduro e licoroso. Enquanto bebíamos, mulher amada, pensei em Rilke: dez anos não são nada.

sábado, 10 de agosto de 2013

Ter princípios

«Penso que um homem se deveria embriagar pelo menos duas vezes por ano só por princípio, para não se deixar tornar arrogante acerca disso.»

Atribuído a Raymond Chandler.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Morgado de Bucelas 2012


Soc. Agr. Boas Quintas. DOC Bucelas. Arinto. Nuno Cancela de Abreu (enol.). 12,5% vol. 6 € (Restaurante Barrete Saloio, Bucelas).

Que alegria! Um Bucelas que desconhecia, logo inteiramente novo! E da lavra de Cancela de Abreu, esse santo que nos devolveu o Arinto! Viva Cancela de Abreu! Viva a acidez máscula dos melhores Bucelas! Abaixo os brancos redondos e mariconços! Viva o Barrete Saloio, que vende este vinho a seis euros! Viva quem pagou o almoço! Viva!


Descobre-se na Internet que esta não é a primeira colheita do Morgado de Bucelas. A ficha técnica da anterior refere aromas de lima e maçã verde e caracteriza a prova como essencialmente fresca e mineral, o que é apenas acertado. Ao invés, o contra-rótulo deste 2012 anuncia um «vinho muito frutado» (no inglês, horror dos horrores, até o apodam de «exuberante»), com um sabor citrino e de frutos tropicais. Ora, senhores: o seu vinho tem atributos especiais, naturais, nobres e tradicionais; por que diabo o querem fazer passar por um branco chato, igual a qualquer outro?


Sim, ele será excelente como aperitivo e com mariscos, peixes e «pratos ligeiramente picantes». Mas, para que conste, eu bebi-o com um naco de novilho à hortelão, a melhor apologia da osmazoma — e, ao mesmo tempo, da cenoura e dos brócolos — que conheço. E sabe o que lhe digo, amigo leitor? Viva o Bucelas com carne!

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Casal da Azenha Reserva Velho 1990


António Bernardino Paulo da Silva (Azenhas do Mar). 12,5% vol. Sem mais indicações. 3 € (produtor).

Um Casal da Azenha como novo, salvo seja, mas muitíssimo melhor (e pelo inacreditável preço de três euros): os vários aromas, mais finos, mais perfeitos, estão graciosamente entrelaçados.

É por afinidade que se harmoniza com um feijão verde à mediterrânea, derivação cá de casa do esparguete à bolonhesa, com um molho de tomate verdadeiro, azeite dos Avós e orégãos colhidos pela Tia Maria. Imagine-se. Depois, com o Sol mais baixo no céu, vá-se até à beira-mar e confira-se que são pilritos-das-praias as simpáticas avezinhas que andam debicando pelas pocinhas nas rochas, fugindo a correr do alcance do mar.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Collares Viúva Gomes 2006

O último colarinho branco que tínhamos. A questão, Oh eu! tão triste, recorrendo — Que bem no meio destes, Oh eu, Oh vida?


Jacinto Lopes Baeta, Filhos. DOC Colares. Malvasia. 11,4% vol. ? € (50 cl).

Que branco singular, luminoso e salgado, mediterrâneo mas atlântico. Benditos sejam para sempre estes vinhos, que evocam o melhor Portugal.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Soluço experto

Antes de provar o vinho, certifique-se de que tirou o armário do copo.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Terras do Pó Reserva 2009


Casa Ermelinda Freitas. Regional Península de Setúbal. Castelão. Jaime Quendera (enol.). 14% vol. Cerca de 6 € (Intermarché).

Insinuante Castelão de Fernando Pó, com aquela marca novo-mundista de Quendera (a marca quenderista, digamos), exemplarmente condensada em máximas enológicas — que afinal nos vêm dos franceses — como «O que tu queres sei eu» e «Gostas pouco, gostas».

terça-feira, 9 de julho de 2013

Alerta às populações

Terceiro domingo de Verão. Para me proteger do calor, fiquei na varanda quase até acabar a sombra, por volta da uma hora, lendo um conto do Eça, ausente de muitas colecções, que guardava para a meteorologia mais propícia: Um dia de chuva.

Logo na primeira página, surge um «vinho de Pedras Negras», depois «o delicioso vinho branco da quinta» do Paço de Loures, depois «uma garrafa especial de vinho do Abade de Carmelinde». Resultado, cheguei ao almoço com uma sedezinha cheia de relevo (outra flor colhida ali), que saciei com o último colarinho branco que tínhamos, um Viúva Gomes de 2006. Lá iremos, lá iremos.

Durante a tarde, enquanto assistíamos a Life of Pi, bebi muita água do Luso, seguindo ordeiramente os alertas das autoridades, que, como de costume, aconselhavam a população a não beber só whisky, acho eu.

Para continuarmos com o Eça, tomámos dois copos de Tormes antes do sol-pôr. E ao jantar, com o sushi, para não deixarmos os clássicos, sorvemos a nossa dose de BSE.

Com esta sequência de brancos, mais a maçã que lanchara, à noite os meus dentes resplendiam. Experimente o leitor e verá se não obtém o mesmo efeito. Seguidamente, reclame para essa tal Direcção-Geral de Saúde, que sabe mandar-nos sair do sol e rebentarmo-nos com água, qual Nícias, mas sobre os benefícios de higiene e alvura que há em ingerir maçãs e vinho branco, moita.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Terras de Santo António 2006


Soc. Agr. da Quinta de Santo António. DOC Dão (Fornos de Maceira). Touriga Nacional, Alfrocheiro, Tinta Roriz. Paolo Fiuza Nigra (enol.). 13% vol. 2,29 € (Leclerc).

Uma pérola de proporção, graça e bondade. Transita deslizando — ou saltitando? — entre a mesa do jantar e um serão de Britcom.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Transforma-se o amador

Ontem, duas coisas me salvaram. De tarde, os capítulos finais de Época de Acasalamento, de P.G. Wodehouse, foram um bálsamo providencial. (Sobre Wodehouse, Alexandre Soares Silva, autor da tradução portuguesa, muito boa, da Os Livros da Raposa, chancela da Cotovia, escreve no prefácio: «É preciso amar uma pessoa que se vinga de maneira tão caracteristicamente inocente e benigna.»

Confira o leitor se não há de facto um sopro de benignidade nestas linhas:

— Bem, quer saber uma coisa? — disse eu. — Não me importava de experimentar. Seria uma experiência. É uísque, ou clarete ou uma coisa assim, não é?
— Porto. Você pode não gostar.
— Ah, acho que vou gostar.
E, no momento seguinte, eu já estava em posição de dizer que tinha gostado. Era um excelente vinho do Porto velho, encorpado e cheio de aromas, e embora a melhor parte de mim me dissesse que devia ser tomado em golinhos, esvaziei um copo cheio de uma assentada só.
— É bom — disse eu.
— Dizem que este é mesmo excepcional. Mais?
— Obrigado.
— Também vou tomar outro — disse o Esmond Haddock. — Precisamos de muito ânimo nos dias que correm. Conhece a expressão “Estes são os tempos que põem à prova as almas dos homens”?
— Nunca ouvi. Foi você que inventou?
— Não, ouvi algures.
— Muito fixe.
— Até que é bastante. Mais um?
— Obrigado.
— E eu faço-lhe companhia. Posso contar-lhe uma coisa?
— Conte.
Inclinei o ouvido convidativamente. Três cálices do néctar certo tinham-me deixado com um carinho especial por este homem. Não me lembrava de ter alguma vez gostado tanto de um tipo no primeiro encontro, e se ele me queria contar os problemas dele, eu estava preparado para o ouvir com a mesma atenção com que um empregado de bar ouve um freguês velho e estimado.)

Poucas horas depois, um casal amigo passou por cá, apenas para nos trazer uma garrafa de certo vinho de lavra familiar. Advertiram que era visita de médico, mas nós, privilegiando a cura pelo convívio, arrastámo-los para a varanda e sentámo-nos diante do poente, próximos de um tabuleiro de acepipes e uma quadra de copos. Provámos o vinho — um tinto agradável, de bons aromas vinosos, feito não longe daqui, num lugar chamado Pedra Amassada —, respirámos, rimos um tanto. Foi tudo.

Durante o dia, lembrara-me a frase terrífica que ouvi a Enrique Vila-Matas, algo como, citando de memória, que não existe progresso, ou seja, nós nunca aprendemos nada. Porém, enquanto a noite caía, eu perguntava-me se saber viver não será, em certa medida, saber fazer parte: do lugar onde vivemos, do tempo que nos coube, da vida dos outros, daqueles que amamos, daquilo que amamos.

Servi-me outro copo, e continuei a beber.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Ser servido

Hoje, de neurastenia ligeira e músculos tensos, cometi uma extravagância. Estando sozinho, fui escolher uma garrafa de tinto para o almoço. Agachei-me, avaliei as minhas opções e decidi simplesmente beber o vinho que mais me apetecesse, ainda assim deixando de fora alguns poucos intocáveis, admito.

Acabei por abrir um Vinha dos Velhos Grande Escolha 2008, alto-alentejano da Herdade dos Muachos, produto das artes combinadas da Serra de São Mamede e de António Saramago. Um vinho de categoria (com um rótulo de fugir, deve dizer-se).

Foi ambrósia para me custar, há mais de um ano, talvez, uma soma considerável, francamente acima das minhas posses — 2,24 €.

Mas quê, não tenho direito? Ah, um dia não são dias, e eu também sou filho de Deus.

Sirvam-me vinho!

No recital que abriu o 48.º Festival de Sintra, e ao mesmo tempo o Verão, sábado, no Palácio da Vila, a soprano Dora Rodrigues cantou esta romança de Verdi. Nós desejámos voltar para casa, finda a noite, e cear queijadas e vinho.


Brinde

Sirvam-me vinho! Tu só, ó copo,
De entre os prazeres terrenos não és enganador;
Tu, vida dos sentidos, doçura do coração.

Amei; incendiaram-me dois olhares fatais,
Cri na amizade, menina sem asas.
Loucura dos primeiros anos, fantasma ilusório.

O amigo, a amante com o tempo fogem,
Mas tu não temes quem tudo destrói;
A idade não te fere, acresce-te virtude.

Desflorescido Abril, caídas as rosas,
Tu és quem nos ameniza os cuidados maçadores,
És tu quem nos devolve a alegria perdida.

Quem melhor sara as feridas do coração?
Se te não nos desse a próvida vide,
Seria imortal o sofrimento humano.

Sirvam-me vinho! Tu só, ó copo,
De entre os prazeres terrenos não és enganador;
Tu, vida dos sentidos, doçura do coração!

Andrea Maffei

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Adega de Pegões Colheita Seleccionada 2012


Coop. Agr. de Santo Isidro de Pegões. Regional Península de Setúbal. Arinto, Verdelho, Chardonnay, Antão Vaz. Jaime Quendera (enol.). 13% vol. 2,90 € (Jumbo).

Cheira bem como o carvalho, como a fruta que o pariu. Prefiro-o à mesa, mas faz um brilharete onde for.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Soluço em seco

Pasteur terá dito: Há mais filosofia numa garrafa de vinho do que em todos os livros. O taberneiro objectou: Só se for aquelas garrafas de livro e meio.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Vinhos de vinha

É bom ler o Jefford. Graças à sua crónica de 20 de Maio, descobri um casal americano que vive e produz vinho no alto de uma serra na Califórnia, na região do Vale de Napa.

Ela, Carole Meredith, é uma antiga professora do Departamento de Viticultura e Enologia da UC Davis, Universidade da Califórnia. Ele, Steve Lagier, é um vinicultor experiente, produtor de “vinhos de garagem” e, durante catorze anos, empregado na célebre Robert Mondavi, espécie de sinédoque para todo o Napa Valley.

Plantaram eles mesmos a sua pequena vinha, na zona montanhosa de Mount Veeder. Como dizem na introdução do seu sítio na Internet, não têm empregados, nem consultores, nem parceiros, nem investidores. Quando começaram, tinham somente os seus ordenados «e a determinação para trabalhar arduamente e viver gastando pouco.»

Cultivam Syrah, Mondeuse, Malbec e Zinfandel, todas variedades tintas. A vinificação é elementar. A fruta é escolhida na vinha, depois desengaçada e esmagada. Fermentado o mosto, não há lugar a mais maceração. O vinho é prensado e deposto em barris usados de carvalho francês (compram-nos três vezes usados e continuam a usá-los «até se começarem a desmantelar»), onde passa de dezoito a vinte meses. Nesse tempo, trasfegam-no duas vezes. Por fim, colam o vinho com claras de ovo (a colagem é um método de clarificação por acção de uma dada substância, aqui as claras de ovo, que faz sedimentar e precipitar as partículas em suspensão), trasfegam-no mais uma vez e engarrafam.

O que mais comove no caso de Carole e Steve é justamente uma certa visão do mundo, da vida, do vinho — clara, natural, simples, ou seja, essencial. Por isso se apresentam assim, sem tergiversações: «Estes são vinhos de vinha. A nossa responsabilidade é salvaguardar o vinho durante a sua passagem da vinha à garrafa e protegê-lo de demasiada enologia.»

Havemos de ir à Califórnia.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Velázquez

Faz hoje anos que nasceu Diego Rodrigues da Silva y Velázquez (1599-1660). Não se estranhe os nomes portugueses: o pintor, nascido em Sevilha, era filho de um portuense.

É pois nosso dever, como ibéricos, brindarmos esta noite ao grão Velázquez. Com um grão cálice de porto, evidentemente.

Los borrachos, o El triunfo de Baco

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Soluço cervejeiro

Pasteur terá dito: Há mais filosofia numa garrafa de vinho do que em todos os livros. O taberneiro acudiu: Senhor doutor, mais uma cervejinha?

sábado, 1 de junho de 2013

Novas notas amadoras

E agora, algo completamente diferente.


Dona Ermelinda 2010

Casa Ermelinda Freitas. DO Palmela. Castelão, Cabernet Sauvignon, Touriga Nacional. Jaime Quendera (enol.). 14% vol. Cerca de 3 € (Pingo Doce).

Transporta balidos distantes, caracteres genuínos, vibrações suaves. Palmela leal.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Entrevista com Francisco José Viegas

Nos vinhos, quais são os seus clássicos? Tem uma reserva de imprescindíveis?
Confesso que a resposta é negativa em relação a ambas as perguntas... Ou seja: não tenho uma reserva de vinhos imbatíveis. Depende muito da estação do ano, da meteorologia, da comida, daquilo que se vai fazer a seguir, daquilo que se fez antes. Um vinho não se bebe num laboratório, como se todo o bebedor fosse um provador e um detector organoléptico... De modo que há vinhos que são eternos porque apelam a uma memória, a um sentido da vida, a uma esperança no destino – não exagero. Eu nasci na aldeia onde se produziu o primeiro Barca Velha, o que me deixa sempre comovido. O Quinta da Leda de outrora era mesmo ao lado. O novíssimo Meandro e o Vale Meão, naturalmente. Fazem parte da minha geografia, da forma como se olha o rio, da maneira como recordo as idas do meu avô à Quinta do Vale Meão e eu o acompanhava (ele era operário, e fazia consertos na canalização da quinta...). O Quinta da Leda de 2009 é um bom exemplo de grande vinho, tal como o Robustus Niepoort ou o Poeira. À parte isso, há vinhos como o Valle Pradinhos, por exemplo, que evocam também uma parte da minha infância em casa dos avós maternos, perto de Bragança... De resto, apaixonam-me os novos brancos e rosés do Douro, que provam e sustentam a capacidade inventiva dos criadores da região. E às vezes tenho saudades de vinhos que já não existem, como o Grantom dos anos setenta... Ou do Evel branco de 2000, uma pérola que não se repete.

Tomemos o arroz de bacalhau de Jaime Ramos. Ramiro levou uma garrafa de vinho, não sabemos qual, para o jantar com o inspector. Aquele prato não tem o seu vinho perfeito?
Tem. Eles bebem Valle Pradinhos branco. Uma recordação de adolescência tardia, um sabor único, um aroma frágil.

Enochateia-se facilmente? Quantos descritores aromáticos parvos são precisos para irritar um duriense?
Irrito-me, sim. Os enochatos são uma categoria de gente aborrecida, capazes de destruir um vinho só com uma frase. A verdade é que se trata de uma forma de estar na vida, e eles dependem largamente da sua capacidade de alardear conhecimentos a propósito e despropósito. É como se vivessem num laboratório e numa “lista dos vinte mais”... Ora, que eu saiba, o comportamento de um vinho depende muito da companhia para jantar, das conversas à mesa, da comida, da paisagem, do apetite. Não acredito em características imutáveis de um vinho e suponho, mesmo, que um vinho perde qualidades quando é bebido com pessoas aborrecidas. A ideia de que um vinho sabe a madeiras velhas, ou a amoras silvestres, ou a cera de eucalipto ou a terebintina, é-me razoavelmente duvidosa. Um vinho é a sua paisagem, a sua poeira, a sua memória, o prazer que nos concede.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Espiral de dívida

Nem sei muito bem como exprimir esta pura alegria: homens que admiro — a quem estou penhorado pelo simples benefício da sua actividade, da sua erudição, do seu génio, do seu humor, da sua sensatez — consentirem em gastar algum tempo para responder a perguntas que lhes remeto. Posso dizer, sem exagero, que cada frase em retorno vale Barca Velha.

Nos livros aprende-se a viver. De resto, além do amor e da viagem, eles são a única coisa que prolonga as nossas vidas. O leitor sabe. Só por isso, devemos toda a gratidão do mundo aos nossos autores.

As “entrevistas frugais” regressam depois de amanhã, com Francisco José Viegas. Sou seu leitor, era fatal: perdi-me numa espiral de dívida.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Outro tweet pasteurizado

Pasteur terá dito: Há mais livros numa garrafa de filosofia do que em todò vinho.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Tweet pasteurizado

Pasteur terá dito: Há mais filosofia numa garrafa de vinho do que em todos os livros. Hic.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Vinhas Altas Reserva 2004

CAVIPOR, Caves Monteiros, Vinícola de Penafiel. Regional Minho. Sousão. Osvaldo Amado (enol.) (?). 12,5% vol. 2,99 € (Intermarché).
Patê, rosmaninho, fumo. Grande frescura. Um carácter raro.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Outro tweet taberneiro

Pasteur terá dito: Há mais filosofia numa garrafa de vinho do que em todos os livros. Resposta do taberneiro: O senhor doutor hoje não bebe mais Nietzsche.

sábado, 11 de maio de 2013

Tweet taberneiro

Pasteur terá dito: Há mais filosofia numa garrafa de vinho do que em todos os livros. Foi quando o taberneiro concluiu que eram horas de fechar a biblioteca.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

As serras

Vinha de Tormes

«Mas o que sobretudo a cativou foi o tremendo apetite de Jacinto, a entusiasmada convicção com que ele, acumulando no prato montes de cabidela, depois altas serras de arroz de forno, depois bifes de numerosa cebolada, exaltava a nossa cozinha, jurava nunca ter provado nada tão sublime. Ela resplandecia:

― Até faz gosto, até faz gosto!… Ora mais uma destas batatinhas recheadas…

― Com certeza, minha senhora! até duas! As minhas rações, em mesas destas, tão perfeitas, são sempre as de Gargântua.

― Não cites Rabelais, que a tia Vicência não conhece os autores profanos! exclamava eu, também radiante. E prova esse vinho branco cá da nossa lavra, e louva Deus que amadurece tal uva.»

Eça de Queiroz, em A Cidade e as Serras (1901)

terça-feira, 23 de abril de 2013

Saber

Hoje é Dia Mundial do Livro. Shakespeare morreu, e terá nascido, a 23 de Abril (1564-1616).


«Um livro, quando encontra um leitor, vai enriquecê-lo extraordinariamente, ampliar a sua personalidade, dá-lo a conhecer a si próprio. (…) Quem lê um livro, muitas vezes, no final já começa a ser um homem diferente.»

Urbano Tavares Rodrigues, no documentário O Adeus à Brisa (2008)


«Com alegria e riso venham as rugas de velho,
E que antes o meu fígado aqueça com vinho
Do que o meu coração gele com gemidos mortificantes.»

William Shakespeare, em O Mercador de Veneza (c. 1596)

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Adega de Palmela 2011 (tinto)

Por este e por outros é que ainda não partimos da agreste praia da Ericeira, num belo iate triste chamado D. Amélia.

O tinto em questão recebeu medalha de prata no Concurso Nacional de Vinhos 2012. A garrafa não o ostenta. A sua apresentação é modesta e apelativa. Consta que é conhecido por «Palmela do rótulo roxo». Custa 1,89 €. 5 reais, gente boa.

Por cá, ainda há tempo para o açambarcar no Pingo Doce. Está a 1,49 €. O preço da prata da casa.


DO Palmela. Castelão, Cabernet Sauvignon, Trincadeira, Aragonez. Luís Silva (enol.) (?). 13,5% Vol. 1,49 € (Pingo Doce).
Um aroma limpo, de fruta e especiaria. Com tempo, chega a lembrar sericaia* — a canela, a ameixa em calda. De sabor, frutado, uma vaga doçura, acidez e taninos bem doseados. Bom e corredio.

* Uma curiosidade: sericaia provém do malaio «srikaya», que designa uma iguaria muito fina.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Amador, por minha fé

Há uma semana, Andrew Jefford — autor do sensato e útil 101 Coisas que Deve Saber sobre Vinhos (Cotovia, 2001) — dedicou a sua coluna das segundas-feiras na revista Decanter ao tema das notas de prova. Em sua opinião, as de Robert Parker «permanecem o padrão de ouro. São extensas o suficiente para fazer justiça aos vinhos sobre que está escrever e, embora não polidas em nenhum sentido literário, transmitem o carácter do vinho com grande destreza, são intrinsecamente coerentes, muitas vezes enquadram o vinho nas colheitas anteriores ou em outros contextos vinários, sendo também subtilmente preditivas sobre a sua trajectória evolutiva, e fervilham com o tipo de energia e entusiasmo que pode animar o leitor a fazer uma compra.»

Recordo muitas vezes uma passagem de A Relíquia, do Eça: «esse “descarado heroísmo de afirmar”, que, batendo na Terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao Céu — cria, através da universal ilusão, ciências e religiões.»

Com efeito, no campo da nossa escrítica de vinhos, o heróico descaramento — o topete — é tamanho e tão frequente, que não apenas se faz uso comum da afirmação, mas também se generalizou a utilização de um número de palavras exóticas, que por sinal não existem, como “compotado”, “especiado”, “limonado” etc. Nas fileiras de autores, bloguistas, críticos, jornalistas e demais peritos, há verdadeiros super-heróis da afirmação, façanhudos temíveis a adjectivar, e a exclamar, e a pontuar.

Quanto a mim, por minha fé, não passo de um amador. Bebo vinhos baratos. Publico notas de prova deliberadamente simples. Desconfio dos entendidos, de haver tantos entendidos, das associações de entendidos. Prefiro amiúde o inactual — a tradição. Tenho pena que seja moda dizer “private selection” em vez de garrafeira, “wine bar” em vez de bar de vinho(s), ou bar vínico, “wine lover” em vez de amante, ou amador, ou apreciador de vinho(s), … Provavelmente, estou em minoria.

Pelo que vai exposto, caro leitor, tive uma ideia tola e feliz: um grupo de AA: Apreciadores Amadores. Um grupo almoçante de amparo e camaradagem entre humildes apreciadores amadores, que porém fazem algum caso das palavras. Chamemos-lhe — os Vencidos do Vinho. Estão abertas as inscrições.

terça-feira, 9 de abril de 2013

A alma do vinho

Por ocasião do aniversário de nascimento de Baudelaire, uma tradução imperfeita, como todas.


Uma noite, a alma do vinho cantava nas botelhas:
«Homem, a ti dirijo, ó caro deserdado,
Sob a minha prisão de vidro e minhas ceras vermelhas,
Um canto de luz e fraternidade repassado!

Eu sei quanto é preciso, sobre a colina ardente,
De penas, de suor e de sol abrasador
Para engendrar a minha vida e dar-me a alma pertencente;
Mas não hei-de ser ingrato ou malfeitor,

Porque sinto uma alegria imensa quando me deito
Na garganta de um homem desgastado por seus trabalhos,
E é um doce túmulo o seu caloroso peito
Onde passo bem melhor que nos frios sob os soalhos.

Ouves tu os refrões dos domingos ressoando
E a esperança que chilreia em meu seio palpitante?
Cotovelos sobre a mesa e tuas mangas arregaçando,
Tu me glorificarás e estarás bem o bastante;

Eu acenderei os olhos de tua mulher aprazida;
A teu filho restituirei a sua força e suas cores
E serei para aquele fraco atleta da vida
O óleo que reforça os músculos dos lutadores.

Em ti cairei, vegetal ambrosia,
Grão precioso lançado pelo eterno Semeador,
Para que do nosso amor nasça a poesia
Que brotará rumo a Deus como uma rara flor!»

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Salmo

«1 Bendize, ó minha alma, ao Senhor (...)
13 Ele rega os montes desde as suas câmaras: a terra farta-se do fruto das suas obras.
14 Faz crescer a erva para os animais, e a verdura para o serviço do homem, para que tire da terra o alimento.
15 E o vinho que alegra o coração do homem e faz reluzir o seu rosto como azeite, e o pão que fortalece o seu coração.»

Salmos, 104

domingo, 17 de março de 2013

Irreverente 2011 (branco)

UDACA. Regional Terras do Dão (Serra da Estrela). Encruzado, Malvasia Fina, Bical. Carlos Costa Silva (enol.) (?). 13,3% Vol. 2,49 € (Leclerc).
Perfume citrino (lima, vem escrito). (Fermentado em carvalho francês.) Belo corpo, fresco, maduro, um nadinha doce. Uma delícia.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Bebe sempre, sob todolos pretextos

«Estes vinhos [dos países mediterrâneos], que se conhecem por nomes eufónicos, ricos de álcool, perfumados, luminosos, fortes e contrastados como a paisagem onde se criaram, têm na grande variedade das bebidas estimulantes ou refrescantes um lugar à parte, raro e nobre. O homem do povo bebe sempre, em toda a parte, e sob todos os pretextos, os vinhos comuns. No Inverno o vinho aquece e dá conforto, que tantas vezes falta nas casas; no Verão refresca, ajuda a digestão, aguça o apetite que decresce pelos grandes calores.

A cultura da vinha ultrapassa hoje, e muito, os limites do mundo mediterrâneo. Mas pode dizer-se que onde ela chega e o consumo do vinho é ainda corrente, chega também alguma coisa mais que recorda o Sul. Onde se bebe cidra ou cerveja é outra terra e outra gente.»

Orlando Ribeiro, em Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Estudo Geográfico (1945)

sábado, 9 de março de 2013

Dona Ermelinda 2011 (branco)

Casa Ermelinda Freitas. DO Palmela (Fernando Pó). Fernão Pires, Arinto, Chardonnay. Jaime Quendera (enol.). 13,5% Vol. Cerca de 3 € (Intermarché).
Fruta madura (limão, melão, meloa?) e manteiga. Muito saboroso.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Uma coisa viva

Quinta da Fidalga 1980
(Muito obrigado, F.)

«Gosto de pensar na vida do vinho. Em como é uma coisa viva. Gosto de pensar sobre o que se passava no ano em que as uvas estavam a crescer. Como o sol brilhava. Se choveu. Gosto de pensar em todas as pessoas que cuidaram e colheram as uvas. E, se é um vinho velho, quantas delas devem estar agora mortas. Gosto de como o vinho continua a evoluir, de como, se eu abrisse uma garrafa de vinho hoje, ele teria um sabor diferente do que se a tivesse aberto noutro dia qualquer. Porque uma garrafa de vinho está de facto viva. E está constantemente a evoluir e a ganhar complexidade. Isto é, até atingir o auge, como o teu 61. E então começa o seu firme, inevitável declínio.
And it tastes so fucking good.»

Maya para Miles, no filme Sideways

sábado, 2 de março de 2013

Ninguém bebia

Um homem alto e louro, bem vestido. Óbvio inglês. Tweed. Lenço a enfeitar o pescoço. Fumador de cigarros Camel. Leitor de David Lodge e Julian Barnes. Sport, humor negro. Nome, John Walker. Nosso professor no primeiro ano da faculdade.

Pontualidade infame. Capaz de chegar às 8h45 para a aula das 8 horas. Começou por atrasos menores, até aprendermos a esperar por ele. Excelente português, nunca usado com os alunos. Achava ridícula a forma como se pronuncia «Titanic» em Portugal.

Um dia em que me apresentei de camisa clara e gravata escura com bonecos, fez-me ficar de pé no meio da sala pequena, entre as mesas dispostas em u. Único rapaz na turma, dez, doze raparigas. (A minha mulher.) (Estudar Literatura é muito viril. Não tanto como gravatas com bonecos.) Depois mandou-me sair, beber café, dar uma volta. Elas ficaram a descrever-me, ele a escrever no quadro. Barbudo; sombrio; misterioso. Very typical.

Outra vez perguntou-nos se fumávamos. Se bebíamos. Ninguém fumava, ninguém bebia. Possivelmente era verdade. Ele, semblante sério: «Fazem muito bem em não fumar e não beber.» Pausa. «Mas não sabem o que perdem.»

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Grandes talagadas

Por falar em Periquita e no Brasil, aqui fica mais um pouco de grande arte. («Minha arte é maior ainda: eu amo aqueles que me amam.»)

«Raul chegou com uma garrafa de Periquita debaixo do braço.
“Tem lugar no Brasil em que periquita é xoxota. Por isso comprei este vinho para nós tomarmos.”
“J. M. da Fonseca. É um bom vinho português.”
“Esses galegos inventam cada nome”, disse Raul. “Você conhece aquela do português que foi ao médico e botou o pau pra fora pedindo para ser examinado?”
Abrimos o Periquita.
“Certos vinhos podem ser bebidos em grandes talagadas, fora das refeições, como um refresco inebriante. Este, porém, iria melhor com umas tripas à moda do Porto.”
Bebemos o vinho estalando a língua e emitindo outros sons não vocabulares.»

Rubem Fonseca, em A Grande Arte (1983)

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Fontanário de Pegões 2009 (Tinto)

O Fontanário de Pegões Velhos, erigido cerca de 1728, é outra obra aquária do rei que, ao que parece, abominava o vinho.

Coop. Agr. de Santo Isidro de Pegões. DO Palmela. Castelão, Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon. Jaime Quendera (enol.). 13,5% Vol. 2,48 € (Continente).
Faz pensar em fruta passa e alguma erva aromática. Acho que tem o que se chama de aroma vinoso, ou seja, cheira a vinho, sem as notas, as nuances e os nem toques da críptica especializada. De igual modo, a acidez, os taninos sensíveis, embora suaves, e o sabor — a vinosidade? — não são serão propriamente ao jeito moderno. Gostei.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Cheiro de cachorro molhado

Uma cena do filme Estômago. Para todos os «wine lovers», essas pessoas que adoram «wine».
Grande, abençoado Brasil!



«Não adianta ser aquelas uva rubi que nós encontra na feira não, porque ali não dá pé, não dá pra fazer o vinho. Pra fazer o vinho, o sujeito massaroca a uva bem massarocadinho mesmo, deixa fermentando, faz o gás, e aí pega a baba e joga nuns tonel de madeira de fazer pinga, assim — agora, só a baba, sem a pinga! Por isso que o vinho tem essas coisa de sentir cheiro, né? Porque é o seguinte: ele fica um ano e meio ali naquele barril, com o cheiro tudo fechadinho lá dentro; então, quando nós abre a garrafa, ó, vem aquele cheiro de frô, vem aquele cheiro de uva, vem aquele cheiro de mato, vem aquele cheiro de madeira, vem até um cheiro de bundum de animal — de bicho mesmo! É. Tem uns vinho que tem cheiro de cachorro molhado!»

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sociedade do Desassossego

A Sociedade do Desassossego reunia às sextas-feiras, pela noite dentro, num velho sótão que ficava fora do mundo. (Por vezes, a mãe de um dos associados fundadores subia do mundo até ao sótão, que aliás era seu, ou então gritava de longe o nome do filho, quando a assembleia se tornava barulhenta.)

Tratava-se de uma agremiação minúscula e bastante pacata, mais um trio jantante — ou melhor, petiscante — do que um cenáculo à medida de João da Ega. Os nossos serões não contemplavam filosofias severas nem decotes graciosos, o que não deixávamos de lamentar.

Todavia, tínhamos Literatura. À luz de um candeeiro de petróleo muito mais velho que nós (só admitíamos a electricidade na aparelhagem de som), começávamos sempre por ler uma pequena declaração de princípios. Em linhas gerais, propunhamo-nos compreender os mistérios da existência e maravilhar-nos perpetuamente com a espantosa realidade das coisas. Nada de muito extravagante.

Em seguida, outro de nós recitava o Cântico Negro de José Régio, acto solene e obrigatório. «Eu tenho a minha Loucura! / Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, / E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…»

Entretanto, os lábios dos consócios já mergulhavam nos copos, para se unirem ao tinto sacramental. Se bem me lembro, a nossa ordem de trabalhos não separava os livros do petisco, de modo que a praxe consistia em intercalar os poetas com os chouriços, os queijos e as fatias de broa de Avintes.

O vinho era escolhido com uma ingenuidade feliz. Conhecíamos genericamente as marcas mais populares, como Monte Velho ou Periquita, e tínhamos pouco dinheiro. De resto, procurávamos simplesmente o que nos sabia melhor. (Foi nessa época, estou em crer, que descobri que gostava muito do vinho das Terras do Sado. Achava-o perfumado. Dava-me prazer. Apetecia-o. Eis como ingressei na carreira de apreciador.)

Líamos sobretudo poesia, em busca de clarões e de milagres. Confiávamos em Shelley: «ela despe o véu de familiaridade ao mundo, e revela a beleza nua e adormecida, que é o espírito das suas formas.»

Deo gratias, faltava-nos vocação para ascetas ou para místicos. Não praticávamos a salutar mortificação dos sentidos e, o que é pior, gostávamos demasiado de rir. Por isso, regularmente nos voltávamos para o Onésimo — o Onésimo, como os maiores — e as suas «diacrónicas», distribuídas pelos números da revista Ler ou reunidas em volumes como Viagens na Minha Era (2001).

Mais tarde apareceu outro, com este título: Livro-me do Desassossego (2006). Já o sótão se tinha livrado de nós. Com o tempo, também nos livrámos uns dos outros.

Por sorte, o Onésimo continua a escrever as «diacrónicas». Eu ainda gosto muito do vinho das Terras do Sado. O desassossego permanece, e nós também. Nada está perdido.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Adega de Vila Real 2011 (Branco)

DOC Douro. Viosinho, Malvasia Fina, Fernão Pires. Rui Madeira, Luís Cortinhas (enol.). 13% Vol. 2,29 € (Continente).
De cheiro cativante, lembra aromas tão diferentes como de queijo, marmelo e verniz… Bastante esperto e saboroso.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Sóbria embriaguez

«Um ponto interessante são os remédios para aliviar a melancolia. (…) No seu estudo clássico sobre o tema, Burton cita a opinião de Rhazes, para quem o vinho é o melhor tratamento dessa indisposição: “Quem pode encontrar companhia para beber já não tem necessidade de outros medicamentos”. Omar Khayyam era da mesma opinião, e Avicena, no seu Cânone da Medicina, recomenda àqueles que se vêem perturbados pela melancolia não apenas beber, mas emborrachar-se francamente de vez em quando. Já não é fácil encontrar médicos tão sábios. Também o austero Séneca dá igual conselho a um correspondente tristonho, e fala até de “sobria ebrietas”, o que hoje soa quase subversivo.»

Fernando Savater, no El País

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Adega do Calvário 2006

Regional Alentejano (Monforte). Aragonez, Touriga Nacional, Syrah. António Moita Maçanita (enol.). 14% Vol. 5 € (?).
Aromas doces, mais frutados que vegetais, também evocatórios de leite achocolatado e até de chocolate de menta. Com macieza, frescura e sabor quanto baste, acaba a lembrar compota de tomate.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O homem mais sóbrio do mundo

D. João V, «o Magnânimo». Mandou construir o Palácio-Convento de Mafra, o Aqueduto das Águas Livres — exacto — e outros edifícios mais, quiçá não tão sóbrios como estes.

«Segundo Merveilleux, esta moda de beber água em púcaros, com o tão apreciado gosto a barro, manter-se-ia ainda no reinado de D. João V, porque “a água que se bebe nestes púcaros tem sempre o mesmo gosto agradável aos portugueses, que bebem muito pouco vinho, especialmente as pessoas de qualidade que desejam seguir o exemplo do rei, que é o homem mais sóbrio do mundo”. Noutro local, Merveilleux torna a repetir que o rei não bebia vinho e tinha aversão a quem tinha esse vício.»

Ana Marques Pereira, em Mesa Real — Dinastia de Bragança, p. 88 (A Esfera dos Livros, 2012)

sábado, 19 de janeiro de 2013

Grilos 2008 (Tinto)

Soc. Agr. de Casal de Tonda. DOC Dão. Touriga Nacional, Alfrocheiro, Tinta Roriz. 13% Vol. 2,25 € (Recheio).
Aroma algo cremoso de frutos silvestres, com notas vegetais e um toque de chocolate. Sabor de amoras, macio (uma rugosidade levíssima), um nadinha amargo, muito aprazível.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Pílulas

«Um bebedor estava à mesa, e à sobremesa ofereceram-lhe uvas. “Agradeço-vos”, disse ele, repelindo o prato; “não costumo tomar o meu vinho em pílulas.”»

Brillat-Savarin, em Fisiologia do Gosto

sábado, 5 de janeiro de 2013

Beira Mar 2006 (Branco)

Duas penadas de prova do mesmo vinho, separadas por alguns meses.

Haveremos de voltar às Adegas Beira-Mar e aos vinhos de antanho do Sr. Paulo da Silva.

Beira Mar 2006 (Branco)
António Bernardino Paulo da Silva (Azenhas do Mar). 12,5% Vol. Sem mais indicações. Oferta do produtor.
Amarelo-claro. Aroma discreto. Com comida, soube-me a mel de Colares! (5-6-012)
Vago aroma de citrinos e frutos secos. Óptima acidez. (3-1-013)