quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sociedade do Desassossego

A Sociedade do Desassossego reunia às sextas-feiras, pela noite dentro, num velho sótão que ficava fora do mundo. (Por vezes, a mãe de um dos associados fundadores subia do mundo até ao sótão, que aliás era seu, ou então gritava de longe o nome do filho, quando a assembleia se tornava barulhenta.)

Tratava-se de uma agremiação minúscula e bastante pacata, mais um trio jantante — ou melhor, petiscante — do que um cenáculo à medida de João da Ega. Os nossos serões não contemplavam filosofias severas nem decotes graciosos, o que não deixávamos de lamentar.

Todavia, tínhamos Literatura. À luz de um candeeiro de petróleo muito mais velho que nós (só admitíamos a electricidade na aparelhagem de som), começávamos sempre por ler uma pequena declaração de princípios. Em linhas gerais, propunhamo-nos compreender os mistérios da existência e maravilhar-nos perpetuamente com a espantosa realidade das coisas. Nada de muito extravagante.

Em seguida, outro de nós recitava o Cântico Negro de José Régio, acto solene e obrigatório. «Eu tenho a minha Loucura! / Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, / E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…»

Entretanto, os lábios dos consócios já mergulhavam nos copos, para se unirem ao tinto sacramental. Se bem me lembro, a nossa ordem de trabalhos não separava os livros do petisco, de modo que a praxe consistia em intercalar os poetas com os chouriços, os queijos e as fatias de broa de Avintes.

O vinho era escolhido com uma ingenuidade feliz. Conhecíamos genericamente as marcas mais populares, como Monte Velho ou Periquita, e tínhamos pouco dinheiro. De resto, procurávamos simplesmente o que nos sabia melhor. (Foi nessa época, estou em crer, que descobri que gostava muito do vinho das Terras do Sado. Achava-o perfumado. Dava-me prazer. Apetecia-o. Eis como ingressei na carreira de apreciador.)

Líamos sobretudo poesia, em busca de clarões e de milagres. Confiávamos em Shelley: «ela despe o véu de familiaridade ao mundo, e revela a beleza nua e adormecida, que é o espírito das suas formas.»

Deo gratias, faltava-nos vocação para ascetas ou para místicos. Não praticávamos a salutar mortificação dos sentidos e, o que é pior, gostávamos demasiado de rir. Por isso, regularmente nos voltávamos para o Onésimo — o Onésimo, como os maiores — e as suas «diacrónicas», distribuídas pelos números da revista Ler ou reunidas em volumes como Viagens na Minha Era (2001).

Mais tarde apareceu outro, com este título: Livro-me do Desassossego (2006). Já o sótão se tinha livrado de nós. Com o tempo, também nos livrámos uns dos outros.

Por sorte, o Onésimo continua a escrever as «diacrónicas». Eu ainda gosto muito do vinho das Terras do Sado. O desassossego permanece, e nós também. Nada está perdido.

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