Por falar em Periquita e no Brasil, aqui fica mais um pouco de grande arte. («Minha arte é maior ainda: eu amo aqueles que me amam.»)
«Raul chegou com uma garrafa de Periquita debaixo do braço.
“Tem lugar no Brasil em que periquita é xoxota. Por isso comprei este vinho para nós tomarmos.”
“J. M. da Fonseca. É um bom vinho português.”
“Esses galegos inventam cada nome”, disse Raul. “Você conhece aquela do português que foi ao médico e botou o pau pra fora pedindo para ser examinado?”
Abrimos o Periquita.
“Certos vinhos podem ser bebidos em grandes talagadas, fora das refeições, como um refresco inebriante. Este, porém, iria melhor com umas tripas à moda do Porto.”
Bebemos o vinho estalando a língua e emitindo outros sons não vocabulares.»
Rubem Fonseca, em A Grande Arte (1983)
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
sábado, 23 de fevereiro de 2013
Fontanário de Pegões 2009 (Tinto)
O Fontanário de Pegões Velhos, erigido cerca de 1728, é outra obra aquária do rei que, ao que parece, abominava o vinho.
Coop. Agr. de Santo Isidro de Pegões. DO Palmela. Castelão, Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon. Jaime Quendera (enol.). 13,5% Vol. 2,48 € (Continente).
Faz pensar em fruta passa e alguma erva aromática. Acho que tem o que se chama de aroma vinoso, ou seja, cheira a vinho, semas notas, as nuances e os nem toques da críptica especializada. De igual modo, a acidez, os taninos sensíveis, embora suaves, e o sabor — a vinosidade? — não são serão propriamente ao jeito moderno. Gostei.
Coop. Agr. de Santo Isidro de Pegões. DO Palmela. Castelão, Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon. Jaime Quendera (enol.). 13,5% Vol. 2,48 € (Continente).
Faz pensar em fruta passa e alguma erva aromática. Acho que tem o que se chama de aroma vinoso, ou seja, cheira a vinho, sem
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
Cheiro de cachorro molhado
Uma cena do filme Estômago. Para todos os «wine lovers», essas pessoas que adoram «wine».
Grande, abençoado Brasil!
«Não adianta ser aquelas uva rubi que nós encontra na feira não, porque ali não dá pé, não dá pra fazer o vinho. Pra fazer o vinho, o sujeito massaroca a uva bem massarocadinho mesmo, deixa fermentando, faz o gás, e aí pega a baba e joga nuns tonel de madeira de fazer pinga, assim — agora, só a baba, sem a pinga! Por isso que o vinho tem essas coisa de sentir cheiro, né? Porque é o seguinte: ele fica um ano e meio ali naquele barril, com o cheiro tudo fechadinho lá dentro; então, quando nós abre a garrafa, ó, vem aquele cheiro de frô, vem aquele cheiro de uva, vem aquele cheiro de mato, vem aquele cheiro de madeira, vem até um cheiro de bundum de animal — de bicho mesmo! É. Tem uns vinho que tem cheiro de cachorro molhado!»
Grande, abençoado Brasil!
«Não adianta ser aquelas uva rubi que nós encontra na feira não, porque ali não dá pé, não dá pra fazer o vinho. Pra fazer o vinho, o sujeito massaroca a uva bem massarocadinho mesmo, deixa fermentando, faz o gás, e aí pega a baba e joga nuns tonel de madeira de fazer pinga, assim — agora, só a baba, sem a pinga! Por isso que o vinho tem essas coisa de sentir cheiro, né? Porque é o seguinte: ele fica um ano e meio ali naquele barril, com o cheiro tudo fechadinho lá dentro; então, quando nós abre a garrafa, ó, vem aquele cheiro de frô, vem aquele cheiro de uva, vem aquele cheiro de mato, vem aquele cheiro de madeira, vem até um cheiro de bundum de animal — de bicho mesmo! É. Tem uns vinho que tem cheiro de cachorro molhado!»
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
Sociedade do Desassossego
A Sociedade do Desassossego reunia às sextas-feiras, pela noite dentro, num velho sótão que ficava fora do mundo. (Por vezes, a mãe de um dos associados fundadores subia do mundo até ao sótão, que aliás era seu, ou então gritava de longe o nome do filho, quando a assembleia se tornava barulhenta.)
Tratava-se de uma agremiação minúscula e bastante pacata, mais um trio jantante — ou melhor, petiscante — do que um cenáculo à medida de João da Ega. Os nossos serões não contemplavam filosofias severas nem decotes graciosos, o que não deixávamos de lamentar.
Todavia, tínhamos Literatura. À luz de um candeeiro de petróleo muito mais velho que nós (só admitíamos a electricidade na aparelhagem de som), começávamos sempre por ler uma pequena declaração de princípios. Em linhas gerais, propunhamo-nos compreender os mistérios da existência e maravilhar-nos perpetuamente com a espantosa realidade das coisas. Nada de muito extravagante.
Em seguida, outro de nós recitava o Cântico Negro de José Régio, acto solene e obrigatório. «Eu tenho a minha Loucura! / Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, / E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…»
Entretanto, os lábios dos consócios já mergulhavam nos copos, para se unirem ao tinto sacramental. Se bem me lembro, a nossa ordem de trabalhos não separava os livros do petisco, de modo que a praxe consistia em intercalar os poetas com os chouriços, os queijos e as fatias de broa de Avintes.
O vinho era escolhido com uma ingenuidade feliz. Conhecíamos genericamente as marcas mais populares, como Monte Velho ou Periquita, e tínhamos pouco dinheiro. De resto, procurávamos simplesmente o que nos sabia melhor. (Foi nessa época, estou em crer, que descobri que gostava muito do vinho das Terras do Sado. Achava-o perfumado. Dava-me prazer. Apetecia-o. Eis como ingressei na carreira de apreciador.)
Líamos sobretudo poesia, em busca de clarões e de milagres. Confiávamos em Shelley: «ela despe o véu de familiaridade ao mundo, e revela a beleza nua e adormecida, que é o espírito das suas formas.»
Deo gratias, faltava-nos vocação para ascetas ou para místicos. Não praticávamos a salutar mortificação dos sentidos e, o que é pior, gostávamos demasiado de rir. Por isso, regularmente nos voltávamos para o Onésimo — o Onésimo, como os maiores — e as suas «diacrónicas», distribuídas pelos números da revista Ler ou reunidas em volumes como Viagens na Minha Era (2001).
Mais tarde apareceu outro, com este título: Livro-me do Desassossego (2006). Já o sótão se tinha livrado de nós. Com o tempo, também nos livrámos uns dos outros.
Por sorte, o Onésimo continua a escrever as «diacrónicas». Eu ainda gosto muito do vinho das Terras do Sado. O desassossego permanece, e nós também. Nada está perdido.
Tratava-se de uma agremiação minúscula e bastante pacata, mais um trio jantante — ou melhor, petiscante — do que um cenáculo à medida de João da Ega. Os nossos serões não contemplavam filosofias severas nem decotes graciosos, o que não deixávamos de lamentar.
Todavia, tínhamos Literatura. À luz de um candeeiro de petróleo muito mais velho que nós (só admitíamos a electricidade na aparelhagem de som), começávamos sempre por ler uma pequena declaração de princípios. Em linhas gerais, propunhamo-nos compreender os mistérios da existência e maravilhar-nos perpetuamente com a espantosa realidade das coisas. Nada de muito extravagante.
Em seguida, outro de nós recitava o Cântico Negro de José Régio, acto solene e obrigatório. «Eu tenho a minha Loucura! / Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, / E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…»
Entretanto, os lábios dos consócios já mergulhavam nos copos, para se unirem ao tinto sacramental. Se bem me lembro, a nossa ordem de trabalhos não separava os livros do petisco, de modo que a praxe consistia em intercalar os poetas com os chouriços, os queijos e as fatias de broa de Avintes.
O vinho era escolhido com uma ingenuidade feliz. Conhecíamos genericamente as marcas mais populares, como Monte Velho ou Periquita, e tínhamos pouco dinheiro. De resto, procurávamos simplesmente o que nos sabia melhor. (Foi nessa época, estou em crer, que descobri que gostava muito do vinho das Terras do Sado. Achava-o perfumado. Dava-me prazer. Apetecia-o. Eis como ingressei na carreira de apreciador.)
Líamos sobretudo poesia, em busca de clarões e de milagres. Confiávamos em Shelley: «ela despe o véu de familiaridade ao mundo, e revela a beleza nua e adormecida, que é o espírito das suas formas.»
Deo gratias, faltava-nos vocação para ascetas ou para místicos. Não praticávamos a salutar mortificação dos sentidos e, o que é pior, gostávamos demasiado de rir. Por isso, regularmente nos voltávamos para o Onésimo — o Onésimo, como os maiores — e as suas «diacrónicas», distribuídas pelos números da revista Ler ou reunidas em volumes como Viagens na Minha Era (2001).
Mais tarde apareceu outro, com este título: Livro-me do Desassossego (2006). Já o sótão se tinha livrado de nós. Com o tempo, também nos livrámos uns dos outros.
Por sorte, o Onésimo continua a escrever as «diacrónicas». Eu ainda gosto muito do vinho das Terras do Sado. O desassossego permanece, e nós também. Nada está perdido.
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013
Adega de Vila Real 2011 (Branco)
DOC Douro. Viosinho, Malvasia Fina, Fernão Pires. Rui Madeira, Luís Cortinhas (enol.). 13% Vol. 2,29 € (Continente).
De cheiro cativante, lembra aromas tão diferentes como de queijo, marmelo e verniz… Bastante esperto e saboroso.
De cheiro cativante, lembra aromas tão diferentes como de queijo, marmelo e verniz… Bastante esperto e saboroso.
sábado, 2 de fevereiro de 2013
Sóbria embriaguez
«Um ponto interessante são os remédios para aliviar a melancolia. (…) No seu estudo clássico sobre o tema, Burton cita a opinião de Rhazes, para quem o vinho é o melhor tratamento dessa indisposição: “Quem pode encontrar companhia para beber já não tem necessidade de outros medicamentos”. Omar Khayyam era da mesma opinião, e Avicena, no seu Cânone da Medicina, recomenda àqueles que se vêem perturbados pela melancolia não apenas beber, mas emborrachar-se francamente de vez em quando. Já não é fácil encontrar médicos tão sábios. Também o austero Séneca dá igual conselho a um correspondente tristonho, e fala até de “sobria ebrietas”, o que hoje soa quase subversivo.»
Fernando Savater, no El País
Fernando Savater, no El País