terça-feira, 29 de maio de 2012

sexta-feira, 25 de maio de 2012

O sangue de Nosso Senhor

«— Então para desgastar, vá mais esse copito do 47, disse o cónego.
Ele mesmo bebeu pausadamente um bom gole, deu um ah de satisfação, e repoltreando-se:
— Boa gota! Assim pode-se viver!
Estava já rubro, e parecia mais obeso, com o seu grosso jaquetão de flanela e o guardanapo atado ao pescoço.
— Boa gota! repetiu, deste não provou hoje você nas galhetas…
— Credo, mano! exclamou D. Josefa com a boca cheia de fios de aletria, muito escandalizada da irreverência.
O cónego encolheu os ombros com desprezo.
— O credo é prà missa! Esta pretensão de se meter sempre em questões que não percebe! Pois fique sabendo que é duma grande importância a questão da qualidade do vinho, na missa. É que é necessário que o vinho seja bom…
— Concorre para a dignidade do santo sacrifício, disse o pároco muito sério, fazendo uma carícia de joelho a Amélia.
— E não é só isso, disse o cónego tomando logo o tom pedagogo. É que o vinho, quando não é bom e tem ingredientes, deixa um depósito nas galhetas; e, se o sacristão não é cuidadoso e não as limpa, as galhetas ganham um cheiro péssimo. E sabe a senhora o que acontece? Acontece que o sacerdote, quando vai a beber o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, não está prevenido e faz-lhe uma careta. Ora aí tem a senhora!
E deu um forte chupão ao cálix. Mas estava falador nessa noite, e depois de arrotar devagar, interpelou de novo D. Josefa, assombrada de tanta ciência.
— E diga-me lá então a senhora, já que é tão doutora: o vinho, no divino sacrifício, deve ser branco ou tinto?
D. Josefa parecia-lhe que devia ser tinto, para se parecer mais com o sangue de Nosso Senhor.
— Emende a menina, mugiu o cónego de dedo em riste para Amélia.
Ela recusou-se, com um risinho. Como não era sacristão, não sabia…
— Emende o senhor pároco!
Amaro galhofou. Se era erro ser tinto, então devia ser branco…
— E porquê?
Amaro ouvira dizer que era o costume em Roma.
— E porque? continuava o cónego, pedante e roncão.
Não sabia.
— Porque Nosso Senhor Jesus Cristo, quando pela primeira vez consagrou, fê-lo com vinho branco. E a razão é muito simples: é porque na Judeia nesse tempo, como é notório, não se fabricava vinho tinto… Repita-me a senhora a aletria, faça favor.»

Eça de Queiroz, em «O Crime do Padre Amaro»

terça-feira, 22 de maio de 2012

Alento Reserva 2008 (Tinto)

Luís Louro. Regional Alentejano. Aragonez, Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Syrah. 14,5% Vol. Oferta do produtor (preço ronda 11 €).
Vermelho bem escuro. Aroma rico, de compotas de fruta vermelha e silvestre, com um frescor como de coentros, que se faz balsâmico. Elegante, saboroso, persistente. Um vinho esmerado.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Entrevista com Onésimo Teotónio Almeida. Capítulo III: Dois touros.

É possível que o Onésimo não tenha uma anedota ou um episódio em redor do vinho?
Episódios? Com vinho? Bom, já contei alguns. Lembro-me de, quando jovem, me terem oferecido um passeio à ilha do Faial, algo nada fácil para quem vivia em S. Miguel. Ficava longe, no cabo do mundo. Levaram-me à festa de S. João da Caldeira. O Núcleo Cultural da Horta patrocinara um concurso de quadras e insistiu em que eu participasse. Escrevi umas quantas, mas só me recordo de uma a propósito da animação que lá vi, activada a garrafão:
S. João quando novinho
Veio à festa da Caldeira
Nunca tinha visto vinho,
Dançou pela noite inteira.
As outras eram mais ou menos nesse tom. Nada de especial, porém o tema era o ambiente da festa aquecido pelo vinho.
As anedotas são sobretudo de borrachos. Costumo contá-las em série e receio que sejam todas conhecidas. Além de que anedotas de bêbados exigem encenação. Por escrito, não passam bem. As melhores do género que conheço são de irlandeses; ora essas metem inevitavelmente whiskey ou cerveja. Para incluir vinho têm de ser da Europa mediterrânica. Ou atlântica. Por isso aí vai uma das minhas ilhas:
Numa tourada à corda na Terceira um dos arrojados toureiros, que em plena rua se atiram a enfrentar o bravo animal, estava toldado pelo vinho, não conseguindo por isso ser rápido bastante quando o touro investiu contra ele e quase o espatifou. No hospital, a explicar ao médico os ossos partidos, contou então que viu o touro a correr contra ele e quis fugir: Grosso como estava, comecei a ver dois touros. Havia uma árvore ali perto e ia proteger-me por detrás dela mas, como estava a ver tudo a dobrar, também vi duas árvores. Tinha que ser rápido e então tive a pouca sorte de me esconder detrás da árvore falsa…  e apanhei com o touro verdadeiro.
Para terminar, vai uma ocorrida num almoço com um colega professor de Filosofia na Brown, Jim Van Cleve. Perguntei-lhe se ia beber alguma coisa, pois iria pedir o meu indispensável vinho. Escusou-se com o facto de ter de dar uma aula a seguir. Também eu tenho, comentei. Beba um copo, homem! Vai ver que o discurso lhe sai mais suave. O Jim esperou uns momentos antes de reagir: E o raciocínio… mais tosco.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Entrevista com Onésimo Teotónio Almeida. Capítulo II: Não exagerar.

O seu gosto do vinho é mais português ou mais americano? Na LUSAlândia, sê l(USA)landês?
Não sou nacional-vinhista. Por razões pragmáticas, aqui na Nova Inglaterra para consumo caseiro compro sempre vinho português (muito fácil encontrá-lo) e é ele que usamos para ofertas, quando a ocasião surge. Por metade do preço ou ainda menos, adquiro vinho da qualidade de badaladas marcas francesas ou italianas. E faço publicidade do que é nosso.
Nos restaurantes, se há vinho português, encomendo-o pelas mesmas razões. Não havendo, opto por chilenos ou australianos. E, claro, há sempre alguns seguros vinhos californianos. Por sinal, foi na Califórnia, em Napa Valley, que provei os melhores da minha vida. Na adega de Franz Copolla, o realizador de «O Padrinho». Sei que há outras igualmente boas, mesmo em Portugal, porém foi lá que tive acesso a especialidades fora do alcance da minha bolsa, graças a uma bióloga que ali trabalhava, filha de um casal amigo açor-californiano e morador em Napa. Tratamento VIP, toda a tarde fizeram-nos provar vinhos de altíssima qualidade (vi o preço de uma das garrafas: 800 dólares). Mas não foi esse o critério. Néctares de deuses gregos. Além da sensação inigualável ao bebê-los, a total ausência de ressaca, ou sequer ligeira dor de cabeça, na manhã seguinte. Depois de um sono suave com os anjos.
Ah! E noblesse oblige. Acontece de vez em quando ir a casa de emigrantes portugueses que fazem vinho. Há que provar e, por mais carrascão que seja, agradecer aprovativamente. Mas não exagerar porque, se nos descuidamos em simpatia, somos obrigados a levar connosco umas quantas garrafas.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Entrevista com Onésimo Teotónio Almeida. Capítulo I: Um sabor adstringente.

Onésimo é nome de enófilo, dos que sabem as castas e os terroirs?
Não, de modo nenhum. Nem como diletante sequer. Apenas consumidor rasca — que não significa apreciador de carrascão. Aqui em casa o vinho às refeições é obrigatório (fora delas é facultativo). Não cantarolo essa de vinho ser apenas tinto. Com peixe ou marisco e em dia de calor, branco é que é. Mas, em regra, bebo o clássico tinto. Não me dou com o verde, nem com espumantes. Prefiro maduro e seco. Nada de frutados. Aveludados e encorpados sabem-me especialmente. E é isso. Quase esgotei os meus adjectivos e mesmo esses evito usar, sobretudo se o ambiente é pretensioso e os comensais interessados em marcar pontos, algo que se generalizou na última década. Lembro-me de, há um bom par de anos, um recém-encartado (autodidacta) enólogo no papel de anfitrião em jantar oferecido por uma instituição estatal. Presente à mesa estava uma estrangeira lusófona que, por sinal, horas antes me tinha referido o espanto que lhe causavam os conhecimentos vinícolas dos portugueses. Que empregavam termos por ela nunca então ouvidos, como adstringente. Aconselhei-a não se impressionar em demasia porque se tratava apenas de meia-dúzia de qualificativos por todos usados e abusados, qualquer que fosse a marca de vinho servido. Entretanto chegou a garrafa e o senhor armou cena. Cheirou, voltou a cheirar, provou e, com teatral desdém, deu ordem ao empregado para devolvê-la à procedência por aquele vinho não estar em condições. O moço voltou dali a momentos com outra, seguindo-se nova encenação. Depois da repetida aspiração do aroma, o anfitrião provou e declarou peremptório: Este sim! Tem um sabor adstringente. Cruzei olhares com a estrangeira e ela, no seu delicado silêncio, baixou os olhos e sorriu, como a reconhecer ali mesmo a verdade que eu pouco antes lhe confidenciara.
Quanto a cerveja, nada tenho contra. Não implica isso qualquer desprezo por ela. Já tive mesmo momentos na vida em que desejei ardentemente uma bem fresquinha. Todavia a cerveja é, como diz o outro, algo que se aluga. Tão depressa se bebe como… Ah! E também  já passei o tempo das bebidas brancas. Hoje sou fiel ao vinho. Nada de misturas. Nem de abusos, de que nunca gostei. O vinho só entrou no meu quotidiano já aqui nos States, e desde cedo fiz máxima daquela sábia frase de Shakespeare sobre o álcool, no segundo acto da tragédia «Macbeth»: it provokes the desire but it takes away the performance.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Banquete em três capítulos

O entrevistado da próxima semana é Onésimo Teotónio Almeida, académico e autor açoriano, residente nos Estados Unidos da América há décadas.
Outros dados biográficos relevantes, encontra-os o leitor no sítio da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas e, em inglês, numa página da Universidade Brown, onde Onésimo lecciona.
Se havia de ser frugal, esta entrevista saiu lauta e sustanciosa — boa para nos consolarmos da bruteza do Mundo. Um banquete que, por não sermos, o leitor e eu, nenhuns glutões, será sobriamente servido em três apetitosos capítulos.
Até lá, tomemos como aperiente o seguinte trecho de um outro colóquio com Onésimo:
«Gosto de humor em qualquer situação. É uma óptima ferramenta para sublinhar uma ideia, torna-a mais interessante. Quanto à ironia, é sempre preferível ao sarcasmo, porque pede mais distância. O sarcástico é muito envolvido e emotivo, com fúria e raiva. Como aquele tipo que vai ao parlamento e diz — “Bandido, gatuno, meu cabrão!” Vem o polícia e diz — “O que se passa lá dentro?” “Nada, estão a fazer a chamada dos deputados.”

E a ironia?
É mais como o tipo que vai a uma casa de chá, onde estão senhoras educadas, e pergunta — “Há aqui algum sítio onde se possa mijar?” As senhoras respondem: — “Olhe, o senhor, naquele corredor, vira à direita, na segunda porta está escrito ‘cavalheiros’. Não faça caso, entre.” A ironia não é aquela coisa portuguesa do escárnio e do maldizer.»

terça-feira, 8 de maio de 2012

Prova Régia 2000

«Em 1987 a recém-criada empresa Alcântara Agrícola, SA, ligada ao grupo Tate & Lyle, adquiriu a Quinta da Romeira, com uma área rondando os 130 hectares. Aí procedeu à plantação de 80 ha de vinha, com as castas recomendadas para a região de Bucelas — Arinto (85%), Esgana-Cão (10%) e Rabo-de-Ovelha (5%). Tinha acabado de se iniciar um grande projecto vitivinícola, sob a batuta do conceituado enólogo Nuno Cancela de Abreu, que iria restituir à região e aos vinhos de Bucelas o fulgor dos séculos passados.»
Prova Régia 2000
Soc. Agr. da Quinta da Romeira de Cima. DOC Bucelas. Arinto. 12% Vol. 3,99 €.
Amarelo. Mais próximo a manteiga do que a mel, o aroma conserva algumas notas frutadas, principalmente citrinas. Semelhante na boca, amanteigado e ainda esperto.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Entrevista com Herman José

«Viver sem vinho não presta.» Isto é só cantiga, ou é de levar a sério?
É absolutamente para levar a sério, desde que o vinho tenha qualidade.

O Herman tem um vinho predilecto? Algum que o deixe especialmente bem-humorado?
Eu sei que pode ser um choque, mas o meu vinho favorito vem do Reims, tem gás, gosto dele gelado, brut ou rosé, e chama-se «champagne».

Apelo ao seu apetite de gastrónomo cosmopolita. Que combinação de petisco e vinho seria digna de uma última ceia?
Há uma dupla divinal: uma flûte de Krug Clos du Mesnil, e um folhado de trufa preta com foie gras… Depois pode morrer-se à vontade.