terça-feira, 3 de abril de 2012

Sobre o Arinto derramado

Como sucede com livros e filmes, faço por não repetir vinhos. Se almejo a conhecer deles o maior número possível, e tão bons e variegados quanto os haja, é meu dever e meu escrúpulo só deitar mão às garrafas nunca dantes esvaziadas. Não terei tempo de provar muitas centenas de vinhos canónicos, os de antanho como os vindouros. Eis justamente porque é mister empregar cada moeda do erário vínico nesses que não bebi, e dar corpo ao meu próprio cânone.
Oh, mas as Circes e as sereias que a cada passo se insinuam! Sibilino apelo sussurrante de certas vasilhas d’Alsácia! Sabe Deus quantas verti daquele glorioso Bucellas 2005, ao cabo de apurado quatro anos…
O caso é que o meu enlevo hoje, embora outro, escorre de outra alsaciana, e tem outros quatro anos de apurado. Daqui a poucas garrafas, míseras 18, hei-de chorar um rio sobre o Arinto derramado. É o tal da Quinta de Chocapalha, que não verga o formoso nervo nem diante um risoto de grelos com Roquefort. Com Roquefort, senhores!

Arinto com taça de grelos, livros e lunetas

A cada novo copo deste branco, e vão dúzias, sinto-me um Jacinto a descobrir a fava autêntica.
«(…) Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas!… Tentou todavia uma garfada tímida — e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
— Óptimo!… Ah, destas favas, sim! Oh que fava! Que delícia!
E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio…
— Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!»
Nunca por nunca abominei o Arinto. Que disparate. Mas quando embebo o Chocapalha, dou em bradar (entre mim) como o Príncipe de Tormes: — Óptimo!… Ah, deste Arinto, sim! Oh, que Arinto! Que delícia!
Deste, nem em Bucelas, leitor amigo!

6 comentários:

Hugo Mendes disse...

Texto sublime! vou partilhar!
mas deixo o reparo, em Bucelas há que procurar... muitas caras no Arinto vai encontrar!
Abraço!

Copo de Salto Alto disse...

Excelente texto!! Fiquei curiosa... onde encontramos estes vinhos?

João Inácio de Paiva disse...

Viva, Hugo. Obrigado pela simpatia.
Quanto ao seu reparo, diz bem: o Arinto de Bucelas tem muitas caras, felizmente, quase todas bem agradáveis, umas poucas de feições angelicais. Vou continuar a procurá-las, pois então!

João Inácio de Paiva disse...

CM: Muito obrigado pelo seu comentário.
Este Arinto de Chocapalha, só o vi no Ecomarché da Merceana, e já estava para acabar. Não admira nada. A «Revista de Vinhos» considerou-o boa compra a 5,50 €. Na Merceana, custava 1,99 €. Um funcionário disse-me que o produtor, por não conseguir vender o vinho, o entregou à consignação ao supermercado. Não custa a crer?

Copo de Salto Alto disse...

Custa a crer que tal possa acontecer e custa a crer que um vinho seja tão mal tratado por alguns supermercados deste nosso Portugal.Tenho pena que já não siga a tempo de o comprar e que isto (o que relataste)inviabilize novas colheitas deste produtor.
Quanto ao blog, uma única palavra: excelente!!!! Continua a brindar-nos com estes excelentes momentos vínicos :)

João Inácio de Paiva disse...

Obrigado!