«A espantosa realidade das coisasAndamos desencontrados, leitores. Nós todos, os que ora estamos vivos. Somos apressados, desconfiados, desapaixonados. Não nos interessamos. Não comunicamos. Não reparamos. Não nos espantamos. Não temos tempo. Andamos desirmanados, leitores.
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.»
(Alberto Caeiro)
Os vinhos que apreciamos são enxovalhados pelas luminárias (que inda pretendem endireitar-nos à bordoada); os nossos emblemas definham, moribundos; e mesmo as pessoas que nos estimam crêem que nos chamamos José. Oh eu! Oh vida! Oh sorte malvada!
Que se há-de fazer? Vamos andando. De vez em quando, até calha que algum produtor mais extravagante responde às nossas mensagens ― talvez por achar conveniente não desprezar a clientela, talvez por ser bem educado ― e se presta a receber-nos nos seus vinhedos e a conversar connosco. Recentemente, Ana Pereira da Fonseca Reis, responsável pelo enoturismo da Quinta do Sanguinhal, fez-me esse grande favor.
Bisneta de Abel Pereira da Fonseca, Ana tem o jeito pragmático e pressuroso dos empresários. À chegada, explicou que ia um dia de muito trabalho e não se podia demorar: levou-me numa visita às visitas organizadas e pagas (a 18 €) para turistas. No fim, com simpatia, permitiu que eu repetisse a volta, a fazer fotografias. Depois, convidou-me a segui-la até à Quinta das Cerejeiras, onde tem loja a Companhia Agrícola do Sanguinhal. Aí, mostrou-me as garrafas à venda, uma adega com quadros pintados pela avó e uma profusão de alfaias do labor dos vinhos. Falámos alguns minutos mais e despedimo-nos. Antes de partir, cuidei de tirar o retrato à velha casa de Abel Pereira da Fonseca, desenhada pelo famoso Norte Júnior. Eis tudo.
No entanto, recolhi esta história engraçada. Certo dia de boa sorte, Gary Vaynerchuck, comerciante de vinhos que se fez célebre com uma série de vídeos na Internet, resolveu comprar um Cerejeiras tinto. No catálogo do Sanguinhal, é a marca mais modesta: deu muito bem para o empolgar até aos 88 pontos ― e sem precisar fazer contas. Uma ou duas paletes que seguiam até então para os Estados Unidos passaram, num ápice, a uns poucos contentores. Pois não é espantosa a realidade das coisas?
Amigos leitores: é Verão; e nós estamos vivos.