terça-feira, 19 de abril de 2011

Pelintra de bom coração

Domingo, toda a gente sabe, é dia santo. Ora, beber qualquer vinhito a um domingo não só desgosta a família como, com toda a certeza, ofende especialmente a Deus.
Zeloso das minhas atribuições de escanção doméstico, e cheio de escrúpulo cristão, anteontem, quando eram horas, fui buscar as garrafas de tinto que havia abertas. Um, o Quinta da Infesta 2003, um Dão de Santar, havia tempo que andava desconfiado dele e do seu aroma tosco, em que, por sobre a fruta, pairava algum verdor que o desfeava. O outro, o Quinta do Encontro 2008, um Bairrada que abrira na véspera, parecera-me então um vinho magro e inexpressivo. Tornei a prová-los; com efeito, não eram dignos de um almoço de domingo.
Cismei um instante. «Deitá-los fora, não posso. Desarrolhar outra, não convém, porque ficam três abertas para a semana, e algum se há-de estragar.» De súbito, veio o Espírito Santo (ou talvez o do próprio Alexandre de Almeida) soprar-me ao ouvido: ― «Tens um Dão taninoso e um Bairrada franzino. Nenhum é desengraçado de todo. Faz mas é o teu próprio Bussaco, anda!»
Entusiasmado (mas solene), primeiro ensaiei o lote no copo de prova. Depois, munido de um copo medidor, deitei numa garrafa de cristal 25 cl do Quinta da Infesta. Em seguida, verifiquei que, do Quinta do Encontro, havia exactamente a quantidade que eu pretendia usar, ou seja, 50 cl (sem dúvida, uma manifestação da Providência divina). Misturei o vinho, desejando o impossível, que era poder estagiá-lo, para o casar. Em todo o caso, ali estava a minha primeira obra vinícola: o Palace Pelintra 2005.

Palace Pelintra 2005
Se tivesse rótulos, rezariam o seguinte: ― «Eis um vinho de lote do Dão e da Bairrada. Os vinhos que o compõem não eram maus. Este, porque se fez com conceito e bom coração, pode melhor contentar, a si, aos seus e a Deus. Saúde!»

3 comentários:

Serge disse...

Para venderes melhor o teu vinho, podias, na tua modéstia de novato produtor, acrescentar no rótulo: "(...) No fundo, não está nada mal feitinho. Saúde!"!

João Inácio de Paiva disse...

A tua boa lembrança levou-me a repensar os dizeres dos meus futuros rótulos. Talvez devesse, realmente, fazê-los mais singelos. Imagina: ― «Este vinho é muita bom.» Hum?

Flávio disse...

...ou , como diria dona Natal, "Não é mau; à falta de melhor, bebe-se".