Confira o leitor se não há de facto um sopro de benignidade nestas linhas:
— Bem, quer saber uma coisa? — disse eu. — Não me importava de experimentar. Seria uma experiência. É uísque, ou clarete ou uma coisa assim, não é?
— Porto. Você pode não gostar.
— Ah, acho que vou gostar.
E, no momento seguinte, eu já estava em posição de dizer que tinha gostado. Era um excelente vinho do Porto velho, encorpado e cheio de aromas, e embora a melhor parte de mim me dissesse que devia ser tomado em golinhos, esvaziei um copo cheio de uma assentada só.
— É bom — disse eu.
— Dizem que este é mesmo excepcional. Mais?
— Obrigado.
— Também vou tomar outro — disse o Esmond Haddock. — Precisamos de muito ânimo nos dias que correm. Conhece a expressão “Estes são os tempos que põem à prova as almas dos homens”?
— Nunca ouvi. Foi você que inventou?
— Não, ouvi algures.
— Muito fixe.
— Até que é bastante. Mais um?
— Obrigado.
— E eu faço-lhe companhia. Posso contar-lhe uma coisa?
— Conte.
Inclinei o ouvido convidativamente. Três cálices do néctar certo tinham-me deixado com um carinho especial por este homem. Não me lembrava de ter alguma vez gostado tanto de um tipo no primeiro encontro, e se ele me queria contar os problemas dele, eu estava preparado para o ouvir com a mesma atenção com que um empregado de bar ouve um freguês velho e estimado.)
Poucas horas depois, um casal amigo passou por cá, apenas para nos trazer uma garrafa de certo vinho de lavra familiar. Advertiram que era visita de médico, mas nós, privilegiando a cura pelo convívio, arrastámo-los para a varanda e sentámo-nos diante do poente, próximos de um tabuleiro de acepipes e uma quadra de copos. Provámos o vinho — um tinto agradável, de bons aromas vinosos, feito não longe daqui, num lugar chamado Pedra Amassada —, respirámos, rimos um tanto. Foi tudo.
Durante o dia, lembrara-me a frase terrífica que ouvi a Enrique Vila-Matas, algo como, citando de memória, que não existe progresso, ou seja, nós nunca aprendemos nada. Porém, enquanto a noite caía, eu perguntava-me se saber viver não será, em certa medida, saber fazer parte: do lugar onde vivemos, do tempo que nos coube, da vida dos outros, daqueles que amamos, daquilo que amamos.
Servi-me outro copo, e continuei a beber.