terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Unilar Reserva 1977

Todavia, até o mais recatado comete o seu pecadilho; e quando o vinho supera em idade o provador — que diabo, fechemos os olhos.

Unilar Reserva 1977

Caves Bonifácio. Engarrafado em 81, oriundo de Palmela, sem mais indicações (decerto é Castelão). 12,5% Vol. Cerca de 7,50 €.
Vermelho-acastanhado, com halo mais claro; não aparenta 35 anos. Desaparecido, em poucos minutos, algum cheiro de couro, as notas aromáticas mais evidentes são de fruta, ainda, licorosas e doces; também lembra osmazoma, chocolate, figo. Muito macio na boca, tem certo sabor de carne fumada, que faz pensar em enchidos; persistente e bastante aprazível.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Collares Viúva Gomes Reserva Tinto 1996

(Ei-la. Diga lá que não está de um recato heróico.)

Jacinto Lopes Baeta, Filhos. DOC Colares. Ramisco. 11% Vol. ? €.
Vermelho transparente. Um bouquet rico, complexo, em que se reconhecem notas aromáticas animais, balsâmicas, doces, de especiarias e madeiras. Incomparável na boca, na reunião de acidez, macieza e longor.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Vinho que sabe a vinho que sabe a vinho

Um velho reclame

A especial dificuldade em descrever os aromas de um Colares com dezasseis anos levou-me, de novo, a questionar a valia de uma nota de prova. Em que medida podemos confiar nos próprios sentidos? — no rigor das impressões? — na precisão da memória olfactiva?
Ressalvemos desde logo que o tema é sério (pela simples razão de que a crítica do vinho, mais ou menos influente, não deixa de ser a crítica do produtor), mas não se trata propriamente de um assunto de Estado, nem de ciência de foguetões. Usemos de alguma candura.
Em geral, gosto pouco de ler as notas de prova dos outros: são mal escritas, papagueadas, delirantes — e não despertam outro apetite senão de tisanas calmantes. Bem entendido, não quer dizer que as minhas sejam menos más. Longe disso. Todas são falíveis; simplesmente, umas são mais tragáveis do que outras.
Repare-se como, de uma penada airosa e clara, Ferreira Lapa caracterizava o Colares, em 1867: — «(…) os vinhos de Colares são intermediários aos vinhos maduros e aos vinhos verdes, possuindo daqueles a suavidade e o grato paladar, e destes a frescura, a viveza e o aroma aldeídico e tartaroso.»
Em 2009, no «Público», Miguel Esteves Cardoso, sabiamente repimpado na santa vizinhança da Adega Regional, escrevia sobre o seu Colares:
«Numa época em que tudo tem de saber a frutas tropicais, chocolate, baunilha, compotas e mijo de gato, os vinhos de Colares, sejam os tintos Ramisco ou os brancos Malvasia, estão entre os poucos que sabem… a vinho.
São raridades artesanais, blá blá blá, mas o que interessa é que são, de facto, uma delícia. Então o Colarinho branco (…) é uma frescura sequinha, extorquida à areia e ao vento e ao mar, como não há outra neste mundo.»
Nós, tão falhos em Ciência como em Arte, resta-nos o comezinho recurso dos descritores aromáticos: são as tintas prosaicas e fracas com que tentamos pintar uma ideia do vinho: uma vez por outra, é muito natural que saia borrada.

(Não perca, na próxima publicação, a nota de prova do tal Colares. Verá como eu, conturbado mas digno, resisto à tentação de apontar entre os aromas do vinho — o almíscar e o sândalo.)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Ao Sul o sol. Um tipo de crónica

Alento

Certa manhã prometedora de sol, um tipo agarra o volante e põe-se a caminho de Estremoz. Andados poucos quilómetros, ao virar de uma curva na auto-estrada, depara-se uma muralha extensa de nevoeiro. O carro fura, adentrando outra estação, parda, nevoenta, chuvosa.
Até à ponte sobre o Tejo, é um trajecto curto mas congestionado de centos de alminhas, que rodam arrastadamente para Lisboa. Uma vez liberto, preocupado com as horas e convicto de reaver ao Sul o sol, um tipo acelera. São pontuais 10h30 quando cruza o portal e sobe à Adega do Monte Branco. Sol, está de chuva.
Um tipo é ali bem recebido, por caras jovens, gentis, que sorriem e conversam de boa vontade. Vê-se a adega, que é moderna, porém simpática, moderada em dimensões e apetrechos. Sente-se o cheiro do vinho acabado de fermentar. Conhece-se que o negócio prospera, na larga medida em que crescem as exportações. Pela janela, admira-se um momento a paisagem fria: não há uvas; não há cor; não há sol.
Vai-se dali para a Quinta do Mouro — propriedade de Miguel Louro — pai de Luís Louro — proprietário da Adega do Monte Branco. (Um tipo topa a coincidência entre «Mouro», «Louro», «M. Louro».) Tem-se aí o gosto de apertar a mão tinta do vinicultor Luís Chouriço. Ouve-se-lo explicar as modas mais conservadoras da casa, como a pisa a pés ou o uso de uma velha prensa a força de braços. Vê-se a adega, que não é moderna, porém funcional, austera em dimensões e apetrechos.
Daí, ascende-se a uma vetusta sala de visitas. Sobre a mesa, perfilam-se copos e garrafas: de um lado, os vinhos contemporâneos do Louro filho; do outro, os vinhos classicistas do Louro pai. Provam-se os primeiros, branco, rosé, tinto e reservas, que são muito bons, e um tipo tem forçosamente de elogiar o nome deles, no que tem de bem achado, e luminoso, e singelo: Luís Louro produz e engarrafa Alento.
Prossegue-se com os demais, Vinha do Mouro, Casa dos Zagalos, Quinta do Mouro, «Rótulo Dourado», e um tipo observa que, quanto mais severo o rótulo, tanto maior o condão que o vinho tem de emudecer em reverência um tipo.
Entretanto, é hora de almoço. O céu parece clarear um pouco. Trocam-se adeuses e obrigados.
Sozinho em Estremoz, famélico, pouco abonado — que há-de um tipo fazer? Suprema sofisticação da simplicidade: vai comer uma açorda fumegante, que é de poejos e recende.
Depois, sai-se para a rua. Está sol, finalmente. Parecendo que não, é outro alento.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Os rapazes

Os rapazes

Encantei-me por esta fotografia. Descobrimo-la recentemente, vasculhando com a minha Avó as suas recordações.
Não sabemos de que grupo se trata, nem qual era a ocasião. Fosse qual fosse, tinha suficiente importância para se vestir casaco e tirar retrato. A brilhantina, suponho que era de uso quotidiano. Naquela época (finais de cinquenta, começos de sessenta), os rapazes, se algum tempo passavam ao espelho, não era a despentear-se.
Quanto se pode perceber, a esta mesa todos bebem vinho, mesmo os petizes. Há um rapazito de buço, meio escondido, que tem o copo vazio: ou foi o primeiro a emborcá-lo, ou, o que é mais certo, é o copinho-de-leite da ordem. Já o fedelho defronte tem um copo cheio, e tão danadinho estaria, que até saiu desfocado. A senhora risonha do fundo também não tem vinho; mas repare o leitor no brilho daquele rosto; no regalo daquela perna traçada.
(Antes de voltarmos aos rapazes, não lhe parece um tanto lúbrico aquele olhar fêmeo, por detrás do crianço de colarinhos? Não? É talvez da minha vista.)
Então, os rapazes: em ziguezague, depois do copinho-de-leite e o outro fedelho, temos um flagrante delitro de arregalar o olho; um rapazola todo contente; um sujeito que prefere não ver; outro prestes a decilitrar — ou a escavacar o fotógrafo; o seguinte, de que se vê somente a testa, talvez já comesse qualquer coisinha mais do que pão e azeitonas.
Quanto ao cavalheiro mais garboso de entre todos, chamava-se José Reinaldo Ferreira Inácio. Viveu entre 1932 e 2006. Foi meu Avô, e um bom rapaz.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Almojanda 2003

Mais uma excentricidade emanada do que se chama «as leis de mercado»: o Intermarché de Mafra está a vender o Almojanda 2003, da Tapada do Chaves, a 1,89 €. A promoção (salvo seja) estará relacionada com a descontinuação da marca, mas também, por certo, com a idade do vinho.
Já agora, registe-se que certo branco de Sandra Tavares da Silva, passível de inspirar exclamações, continua a poder comprar-se por 1,99 €, no Ecomarché da Merceana. Grande negócio...
Enfim, é o desconcerto do mundo. Está certíssimo.

Almojanda 2003
Tapada do Chaves. Regional Alentejano. Trincadeira, Castelão, Aragonez. 13,5% Vol. 1,89 €.
Vermelho-escuro, com um halo de evolução. Aroma doce e perfumado, de fruta perfeitamente casada com madeira, temperado por notas vegetais, como de eucalipto ou resina. Assim também na boca, bem vivo, bem fresco, bem bom.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Vinhas do Lasso Colheita Seleccionada 2009

Quinta do Pinto. Regional Lisboa. Touriga Nacional, Syrah, Cabernet Sauvignon. 14% Vol. 8 € (em restaurante).
Vermelho-escuro opaco. Aroma licoroso de fruta, balsâmico, de pimento, cremoso, de baunilha, com pós de canela. Na boca, repete-se a impressão de pimento sobre fruta, junta com apreciável frescura e uma ponta de adstringência. Fez bela figura com um cozido.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Uma questão de tempo

Ao fundo, a adega

O tempo foge. Como é possível que passasse outro Natal, e outro Ano Novo, e outro Janeiro? Ainda há tão pouco éramos novos. Não sabíamos o que eram cãs, nem dívidas, nem mortos. O Mundo girava mansamente, com o fim único de presenciar a nossa glória. Nós não falharíamos: havia tempo para tudo — e tudo é uma questão de tempo.
Entretanto, correm os dias. O leitor sabe como são velozes os dias que correm, indiferentes a angústias e fadigas. Infindos afazeres, obrigações, cuidados, e Internet a perder de vista, e navegar é preciso. Quando se dá conta, não há tempo para nada.
Admiravelmente alheia a este aspecto de corrida contra o tempo, que a vida sempre parece adquirir, a adega do Mouchão, toda serenidade, método, harmonia, afigura-se-me a mais amável de quantas tenho conhecido.

Adega do Mouchão

Na propriedade dos Reynolds, família de origem escocesa, a celebrada fleuma britânica é sinónimo de grande paciência, de falta de pressa — de vagar. Quanto a indiferença, se alguma, só, precisamente, pelo ar do tempo. «Não tencionamos mudar.» Eis a voz corrente, e uma afirmação que não deslustraria como insígnia; mas a casa é bem servida, também nesse particular: — «VINUM SANGUIS VITAE». O vinho é o sangue da vida.
Para esquentar o meu, quem dera agora o calor que fazia quando atravessei a Vinha dos Carapetos, berço provável da Alicante Bouschet em Portugal. A casta é a base de todos os tintos do Mouchão. São vinhos de um carácter extraordinário, retintos, ricos, longevos, como é exemplo o notável 1990 que me foi dado provar.

O sangue da vida

Nesse ano, leitor, ainda a bendita adega não tinha electricidade. Chegou em 91, mas tudo permanece capaz de laborar sem ela. É que o vinho é ali feito hoje como há cem anos; e é regra no Mouchão não haver mais novidades do que duas por século. Afinal de contas, é preciso dar tempo ao tempo.
Ainda vai ser um longo Inverno. Então não vai...