quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Um copo de charneco

Sempre que calho beber um copo de bom Bucelas, vêm-me ao espírito as palavras de génio com que o Eça inscreveu o seu Tormes no Futuro: ― «um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo.»
Estou convencido, por uma abundante experiência, de que um Bucelas bem feito, muito mais do que bom, é um vinho benéfico. Como um bálsamo, ele entra realmente na alma, e apazigua, retempera, dá alento. A Ciência explica esta virtude penetrante: ― «A principal característica dos vinhos de Arinto é a qualidade da sua acidez, à qual alia uma excelente estrutura e aveludado, que lhe são conferidos pela riqueza em substâncias pécticas e em proteínas, quando é produzida em terrenos calcários.»*
A Literatura também dá sua achega. Voltando ao Eça, em «A Relíquia», diz um Teodorico transtornado:
«Fui tombar, quase desmaiado, no canapé de couro. Ele ofereceu-me vinho de Bucelas. Bebi um cálice. E passando a mão trémula sobre a face lívida:
― Então dize lá, conta lá tudo, Justininho...»
À requintada mesa dos Maias não podia ele faltar:
«— Bucelas? — murmurou-lhe sobre o ombro o escudeiro.
O administrador ergueu o copo, depois de cheio, admirou-lhe à luz a cor rica, provou-o com a ponta do lábio, e piscando o olho para Afonso:
— É do nosso!
— Do velho — disse Afonso. Pergunte ao Brown... Hein, Brown, um bom néctar?
— Magnificente! — exclamou o preceptor com uma energia fogosa.»
De resto, o Arinto de Bucelas é objecto de ternas devoções há séculos, e não só entre os portugueses: Thomas Jefferson, presidente dos Estados Unidos da América nos primeiros anos de 1800, não o dispensava na sua adega, «sempre da melhor qualidade, não aguardentado, e velho»; e o «charneco» a que Shakespeare alude em «O Rei Henrique VI», diz-se que não era outro vinho senão o nosso famoso branco.
Ora, eu tive a felicidade de beber um copo de charneco em plena Quinta do Boição, fonte do Bucellas e de apreciáveis vinhos de quinta, na grata companhia do seu obreiro.

Quinta do Boição
João Vicêncio recebeu-me com bondade e com a paciência que um leigo sempre requer. Tocando vagarosamente o jipe para a adega, ia apontando, ia mostrando, lá a Arinto, acolá a Rabo de Ovelha, estas cepas novas, estas velhas; a certo passo, furámos entre as linhas, roçando as parras ao de leve, atacadas do míldio, aqui e além: e assim era pena que eu não visse as vinhas tão bonitas e viçosas como elas em regra são.
Foi depois, já na adega, no fim de explicar sem reservas os processos de vinificação e todo o funcionamento da maquinaria, que ele, sabido, cheio de malícia, me estendeu um copo do mais recente Bucelas de vinhas velhas, apenas fermentado, que acabava de tirar da cuba para me dar a provar. Eu, pobre de mim, já antevendo o que lá vinha, de boca seca, impreparada, susceptível ― provei com delícias o charneco até à última gota, assim mesmo como estava, a vinte e tal graus de temperatura. O João Vicêncio sorriu-se, satisfeito: e é bem possível que, ali e então, me houvesse nascido uma alma nova.

* Prof. Virgílio Loureiro, em «Os Melhores Vinhos de Portugal – Guia Repsol 2002/2003»

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