quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Dois companheiros dourados

Bebi ontem dois bons vinhos de 2003: Terra Cota, um branco ribatejano, e o Colheita Tardia da Niepoort.
Foi uma feliz coincidência, reunirem-se no frigorífico dois companheiros de colheita. Imagino que um tal encontro não pudesse ocorrer em muitos outros lares, pela simples razão de que o Mercado, esse brutamontes, não gosta de brancos com mais de dois ou três anos de idade. O Mercado não tem vagar para subtilezas.
Os sete anos destes dois vinhos puseram em ambos sensivelmente o mesmo suave dourado. O Terra Cota, feito de Fernão Pires, está melífluo de aroma, mas não perdeu a frescura. Tem mesmo um agradável fundo vegetal, viçoso, que o torna muito bom de beber. A 3 € a garrafa, foi um achado.
O Colheita Tardia da Niepoort, comprei-o depois de ouvir na rádio a entrevista que o Francisco José Viegas fez a Alfredo Saramago, a propósito do lançamento de um livro em que o gastrónomo apresenta uma selecção de 125 vinhos. Esse programa, de 2007, ainda pode, e merece, ser ouvido. Sobre a degustação de um vinho e a linguagem dos críticos, diz Alfredo Saramago: — «Por exemplo: um determinado aroma a chocolate; um determinado aroma a frutos maduros. Sim, porque aquilo é feito de fruta, não é verdade? Mais madura ou menos madura. Há uma quantidade de termos que são perfeitamente compreensíveis, e que nós, de uma maneira ou de outra, chegamos lá. Há outros que são delírio.»
Mais adiante, o Francisco José Viegas confessa-se «destruído» por não ter encontrado uma garrafa deste Colheita Tardia, que, no livro do seu entrevistado, aparece assim descrito: «Cor magnífica. Bem estruturado. Aromas ricos. Mais um ano e será paixão.»
Quanto a mim, trata-se realmente de um belo vinho, com um aroma que lembra maracujá e uma doçura bem temperada de acidez. Não o achei apaixonante, mas agradou-me; e, como também dizia Alfredo Saramago, «esse agradar-me já é muito bom».

domingo, 21 de novembro de 2010

Favorável vinho

«Depois do jantar, com a cabeça quente mas direitinho nas minhas pernas como a torre gótica da igreja românica de Meursault, sentia-me numa forma olímpica. Não vi nenhum conviva sair do château a cambalear. Os vinhos medíocres tornam o joelho mole e a língua pastosa; os vinhos muito bons favorecem as articulações dos ossos e das palavras.»

Bernard Pivot, em «Dicionário Sentimental do Vinho», p. 183 (Casa das Letras, 2007)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Civilização

De acordo com a Antena 1, o Presidente Cavaco Silva e o Presidente Barack Obama, que hoje almoçaram juntos no Palácio de Belém, beberam Cerro das Mouras Grande Escolha 2009, um branco do Douro.
Também se sabe que o presidente português ofereceu ao norte-americano um decantador e os cálices oficiais do Vinho do Porto, ambos da autoria de Siza Vieira, juntamente com uma garrafa de Quinta do Noval Vintage 2008, o ano em que Obama foi eleito.
Sobre o generoso, a jornalista da Antena 1 esclareceu: — «É considerado um vinho quase perfeito, muito elegante, um vinho guloso, e é um excelente cartaz para os nossos vinhos do Porto.»
Não é todos os dias que há tanta civilização nas notícias.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

V. Q. P. R. D.

Os primeiros copos de vinho, bebi-os por volta dos 18 anos, numa tasca que ficava a dois passos da escola. Era o estabelecimento da severa D. Custódia, onde os estudantes, antes, depois ou em vez das aulas, regularmente jogavam matraquilhos e matavam a sede.
De entre esses fregueses, nós, que formávamos a equipa de voleibol da escola, éramos talvez os mais assíduos. No fim do treino físico, rumávamos à Custódia, para o treino de especialidade. Aliás, passado pouco tempo, «os treinos» designavam menos o tempo de correr ou de ensaiar jogadas do que o tempo de beber. «Ir aos treinos» significava ir beber copos à Custódia.
A verdade é que, se nos fizemos uma equipa aguerrida, unida, difícil de bater, o devemos ao vinho. O bebermos vinho já nos distinguia dos demais rapazes; bebê-lo juntos, numa congregação ritual, irmanáva-nos. E depois, o vinho, na sua bondade, conferia-nos força e emprestava-nos o seu melhor espírito. Nós jogávamos com a mesma galhardia com que esvaziávamos os jarros da velha Custódia.
Para além disso, éramos uns vaidosos. Nos torneios da escola, que ganhávamos impiedosamente, a nossa equipa dava pelo nome de «V. Q. P. R. D.». No início de cada jogo, como uma bruta invocação às musas, rugíamos o nosso grito de alento: — «TINTO!»

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Vinho fresco, esperto, seivoso

«Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde — um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de optimismo na face, citou Virgílio:
Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável
destas serras?»

Eça de Queiroz, em «A Cidade e as Serras»