Não há muito tempo, por razões que não vêm ao caso, fui à procura de um homem que não conhecia, a quem pretendia falar. «Fui à procura» é como quem diz, porque eu nem sequer me levantei. Pouco mais sabia dele do que o nome. Fiz pesquisas, inferências, conjecturas. No fim, enviei um
e-mail. Poucos minutos depois, na volta do correio, chegava uma mensagem lapidar: — «Ex.mo Senhor: O Dr. A. C. faleceu em Janeiro de 2003.»
Quando, no começo do Verão, fui à procura (por assim dizer) de certo branco esquisito, muito famoso e apetecido no seu tempo, não quiseram dar-me a notícia de chofre. Foi preciso levantar-me e rumar à Casa das Gaeiras para perceber que andava atrás de outro fantasma.
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A Casa das Gaeiras |
A velha propriedade de muros amarelo-ocre da vila das Gaeiras, no concelho de Óbidos, tem uma história que se perde no tempo — e na Internet, onde a informação sobre ela é escassa e pouco exacta. Por conseguinte, talvez seja de interesse a publicação de uma pequena cronologia da Casa das Gaeiras, que alinhavei cruzando a genealogia dos seus senhores, os materiais e depoimentos lá recolhidos e as fontes digitais.
1720
Construção da Casa das Gaeiras. O seu fundador, um comerciante hamburguês, consagra-a ao fabrico de curtumes.
C. 1800
António Gomes da Silva Pinheiro (1763-1834), médico e militar, adquire a propriedade.
1803-1858
Vida de José Maria Gomes da Silva Pinheiro, filho de António Gomes da Silva Pinheiro.
1850-1904
Vida de José Maria Gomes Viseu da Silva Pinheiro, filho de José Maria Gomes da Silva Pinheiro. Segundo um folheto da própria Casa das Gaeiras, a sua parte mais moderna é construída «mesmo no final do século XIX, bem como os vastos jardins (…) vinhas e instalações vinárias». Tudo indica que é este Silva Pinheiro quem impulsiona a produção vitivinícola. Muitos prémios obtidos (quiçá os primeiros) em exposições como a de Filadélfia são do seu tempo. O mesmo folheto reproduz um anúncio antigo, onde se lê: — «Bebam Gaeiras, o vinho de meza superior. Comprovado nos 25 primeiros prémios obtidos nas exposições nacionais e estrangeiras desde 1876».
1874-1957
Vida de Emília Garrido Pinheiro, filha de José Maria Gomes Viseu da Silva Pinheiro.
1908-1998 (?)
Vida de José Pinheiro Ferreira Pinto Basto, filho de Emília Garrido Pinheiro. Enólogo diplomado em Montpellier, onde terá sido colega de António Porto Soares Franco (1906-1968), da José Maria da Fonseca.
1934-2008
Vida de Frederico Eduardo Ferreira Pinto Basto Lupi, sobrinho de José Pinheiro Ferreira Pinto Basto.
Nos últimos anos, a vitivinicultura das Gaeiras foi confiada aos técnicos da Parras, empresa ligada à Quinta do Gradil, por sinal outra casa com tradição na Estremadura, que produz um conjunto de vinhos passível de agradar a todos os gostos.
Bem diferente consta que era o antigo branco das Gaeiras. Em 2002, no «Guia Repsol», o Prof. Virgílio Loureiro apresentava-o como uma referência, «parte da história do vinho em Portugal»:
«[O Gaeiras branco] ainda hoje é feito à moda antiga, fermentando em tonéis e estagiando sobre a “mãe” durante vários meses. Com uma cor amarelo palha e notas fumadas, é um vinho para conhecedores, com aromas resinosos e de querosene, bom corpo e excelente acidez, que tem, por vezes, um envelhecimento nobre em garrafa.»
A tipicidade do Gaeiras provinha das uvas de Vital, da influência marítima e, com certeza, da «moda antiga». Hoje, a Vital deu lugar a outras castas. A moda antiga perdeu para as modas novas. Afinal,
o moderno Casa das Gaeiras está como nós: resta-lhe a proximidade do mar e os fantasmas do que se vai perdendo. É a vida.